Sophia não nos deixou. Estamos a ouvi-la. Ouvi-la-emos sempre. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo: fui presidente da Assembleia Geral duas vezes, discuti, li versos, fiz limpezas quando faltava a mulher a dias, organizei festas de Carnaval com rissóis e bebidas, mascarei-me, dancei e – coisa que mais do que tudo detesto – fiz conferências. Não havia dinheiro para nada e era tudo improvisado e cada um fazia o que podia, o que sabia ou o que era preciso. Era um tempo de fervor e de dedicação gratuita. A amizade era concreta. E acima de tudo discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era. Às vezes a Pide aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico. Em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardine abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’. A sala era grande e a sua estética desolada, com grandes filas de cadeiras duras, paredes de cor indefinida com alguns papéis e fotografias pendurados e a luz a cair do tecto. Mas havia sempre público que, às vezes além de encher a sala e a pequena entrada, chegava até às escadas. Um público variável, participante, animado. A afluência variava em número, em composição e em disposição, conforme a época e também conforme o tema discutido. Havia sessões serenas e sessões veementes, mesmo fogosas. Era um público não só animado mas quase sempre caloroso, quer no apoio, quer na discordância. Havia uma certa ordem e era muito rara a agressividade. Mas por mais apaixonado que fosse o debate, por vezes todos nos calávamos ensurdecidos. Pois, rente à parede que dava para a rua avançava bamboleante, num chinfrim de apitadelas e silvos e um chocalhar de latas e um guinchar de metais, um daqueles nostálgicos eléctricos de Lisboa. Mal ela passava, o debate continuava sem perder o fio. Todos queriam dizer e ouvir tudo até ao fim: pois naquele tempo era um dos raros sítios no país onde se falava em pura liberdade”. E nesta invocação, lembro que o António Alçada Baptista recorda o Centro como espaço de liberdade. Sophia e Francisco Sousa Tavares bateram-se pelo Centro nos tempos mais difíceis, “que não foram contra a Polícia ou contra o governo, mas contra a apatia e o desinteresse que tomara conta de muitos de nós”. João Bénard da Costa diz, aliás, que, quando se fez sócio do CNC, “este era a casa de Francisco e de Sophia”. Sophia não nos deixou. Estamos a ouvi-la. Ouvi-la-emos sempre. “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. É a busca da eternidade que sempre encontramos em Sophia. É o encontro necessário que, depois, se projecta no além. Em cada palavra, em cada gesto encontramos essa demanda – de liberdade e de justiça. Duas citações:
SONETO À MANEIRA DE
CAMÕES
Esperança e desespero de
alimento
Me servem neste dia em que te
espero
E já não sei se quero ou se não
quero
Tão longe de razões é meu
tormento.
Mas como usar amor de
entendimento?
Daquilo que te peço
desespero
Ainda que m’o dês – pois o que eu
quero
Ninguém o dá se não por um
momento.
Mas como és belo, amor, de não
durares,
De ser tão breve e fundo o teu
engano
E de eu te possuir sem tu me
dares.
Amor perfeito dado a um ser
humano:
Também morre o florir de mil
pomares
E se quebram as ondas no
oceano.
(Coral,
1950).
MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA SOBRE
A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL
(excerto)
…Nunca mais amarei quem não possa
viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem
eternos
A glória, a luz e o brilho do teu
ser,
Amei-te em verdade e
transparência
E nem sequer me resta a tua
ausência,
És um rosto de nojo e
negação
E eu fecho os olhos para não te
ver.
Nunca
mais servirei senhor que possa morrer.
(Mar Novo, 1958).
Sophia não nos deixou. Estamos a ouvi-la.
Ouvi-la-emos sempre. E Eduardo Lourenço justifica-o. Sophia é a “tecedora do
mais alto dia e da mais viva esperança no meio da noite, nossa e da
vida”.
Até sempre, querida Sophia!