O ano 2003 deixa um sabor amargo. É verdade que não havia grandes promessas. As nuvens negras acastelavam-se, há um ano, no horizonte. Hoje continuam lá, ameaçadoras e tristes. Falta memória. Três anos apenas depois do início do novo século, parece que muitos se esqueceram dos dramas terríveis do século XX. Há cem anos também havia uma inconsciência semelhante. Em 1903 a paz reinava na Europa há trinta anos e muitos julgavam que estava adquirida. Os laços de família que uniam todos os soberanos europeus pareciam ser uma garantia de equilíbrio e de entendimento. A Conferência de Paz de 1899 da Haia parecera abrir um bom caminho no sentido dessa consolidação. Mas, subrepticiamente, sob um manto diáfano de fantasia da “belle époque”, as massas criadas pela industrialização animavam um novo tipo de nacionalismo (e não de internacionalismo), enquanto se agravavam os conflitos coloniais. Muitos não se davam conta do verdadeiro significado de algumas notícias que iam surgindo – nesse ano de 1903. A concessão à Alemanha do caminho-de-ferro de Bagdad. O discurso de J. Chamberlain em Birmingham a favor da preferência imperial. O assassinato de Alexandre Obrénovitch na Sérvia. A insurreição da Macedónia. A revolução no Panamá. Isto, enquanto se criavam as fábricas dos automóveis Ford, os irmãos Wright faziam o seu primeiro voo aéreo e Maurice Ravel escrevia Schéherazade… Serve isto para dizer o quê? Apenas para significar que a paz nunca está adquirida e que nunca há entendimentos políticos irreversíveis e perpétuos. Serve, assim, para dar conteúdo ao debate europeu e ao tema da reforma indispensável das Nações Unidas. O conflito do Iraque é um mau sinal, em todos os sentidos – e, infelizmente, os acontecimentos vão confirmando as piores suspeitas sobre a inconsciência e a irresponsabilidade. Houve demasiados erros cometidos por todos, e o fracasso da Cimeira europeia de Bruxelas só demonstra que os egoísmos nacionais estão em primeiro lugar para mal de todos. A que assistimos? À resistência ao conceito de cultura aberta à diversidade e ao pluralismo, ao restauracionismo nacionalista e tribalista, a uma perigosa fragmentação política internacional e dentro das nações, que gera a ingovernabilidade – e a uma ausência de políticas e de políticos audaciosos, capazes de correr riscos e de lançar generosamente projectos de coordenação e de entendimento, não baseados em boas intenções mas num saudável realismo. Faltam objectivos ambiciosos e protagonistas políticos com coragem. A cegueira do politicamente correcto, de que quase todos são vítimas, vai produzindo um pensamento único e efeitos devastadores de indiferença, de descrença e de vazio de princípios e valores… Quem se dispõe a fazer o que Alexandre Magno fez com o nó Górdio?
De 5 a 11 de Janeiro de 2004
O ano 2003 deixa um sabor amargo. É verdade que não havia grandes promessas. As nuvens negras acastelavam-se, há um ano, no horizonte. Hoje continuam lá, ameaçadoras e tristes. Falta memória. Três anos apenas depois do início do novo século, parece que muitos se esqueceram dos dramas terríveis do século XX. Há cem anos também havia uma inconsciência semelhante. Em 1903 a paz reinava na Europa há trinta anos e muitos julgavam que estava adquirida. Os laços de família que uniam todos os soberanos europeus pareciam ser uma garantia de equilíbrio e de entendimento. A Conferência de Paz de 1899 da Haia parecera abrir um bom caminho no sentido dessa consolidação…
5 Janeiro, 2004
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