Agostinho da Silva (1906-1994) morreu há dez anos. O tempo passou a correr. Parece que foi há dois dias. Passado este tempo, começa a ser possível recordar o pedagogo, para além da visão superficial daqueles que, no fim da sua vida, preferiram cultivar a faceta excêntrica do mestre. Agostinho faz parte integrante da cultura portuguesa, em tudo o que realizou e em tudo o que ensinou. Ele pertencia à linhagem de aristocratas do espírito como Jaime Cortesão e de um certo franciscanismo essencial. Para quem o conheceu, e eu tive esse privilégio, ficou para sempre a imagem da sua extraordinária cultura e a força da sua originalidade, incompatível com o reino da estupidez, ferozmente denunciado por Jorge de Sena (outro peregrino do espírito), o reino daqueles que, desconhecedores do percurso do professor, procuraram tirar fácil partido de algumas considerações que nada tinham de ingénuo ou de fácil. Agostinho da Silva foi um permanente interrogador da nossa identidade. E sendo um educador denunciou todas as formas de idolatria escolar. Daí o seu utopismo – que partia das ideias e da realidade. O mais importante, para ele, era despertar as consciências para a liberdade e para a responsabilidade. Daí o culto da escola de portas abertas e da educação permanente. Daí o culto da aprendizagem e da capacidade de aprender mais e melhor. Daí a denúncia de quantos desprezam o saber fazer dos analfabetos. No entanto, isso era o contrário da defesa da ignorância. Era a defesa da sabedoria e da exigência, do aprender incessante e sempre inacabado. Não esqueço as tardes na Travessa do Abarracamento de Peniche a falar das “saudades do futuro”, do Padre António Vieira, das causas da decadência dos povos peninsulares, de Antero, dos Açores e da necessidade primeira do nosso tempo – a educação e a formação profissional e técnica. “O importante é conhecer bem várias filosofias, várias maneiras de pensar e depois ir utilizando cada uma conforme as circunstâncias da vida”. E não esqueço ainda os pequenos cadernos, que só se encontram nos alfarrabistas, sobre figuras históricas e conhecimentos úteis. Há dias, no aniversário de Agostinho da Silva, na Casa dos Açores, voltei a invocar a nossa amizade, insistindo na agudeza do seu espírito e na complexidade do seu pensamento. Só os que o conheceram ou os que se dispuseram a ler o que escreveu e o que disse ao longo da vida podem compreender isto mesmo. E por isso nunca deixei de o citar nas andanças da Educação, em nome da necessidade de cultivar o espírito crítico e a liberdade de espírito. “Importante é instalarmo-nos no paradoxo” – dizia. “Medo tenho eu do ortodoxo e do heterodoxo, que me coibiram de fazer algo que muito me agrada: poder conversar com pessoas de vários pensamentos, de várias atitudes, com a capacidade de as entender em si mesmas, sobretudo quando alguma me aparece com sinal inteiramente contrário ao meu”. Quem pode esquecer?
Guilherme d`Oliveira Martins