A Vida dos Livros

De 4 a 10 de maio de 2015.

A revista «Raiz e Utopia» foi uma lufada de ar fresco. José Mariano Gago aí esteve. E lembramos bem o seu texto que é todo um programa: «Emigrar tem uma diagonal: chama-se educação permanente» (Primavera-Verão 1979). Apelamos à sua releitura e recordamos o amigo generoso e presente.

COM EDGAR MORIN
Era Paris, em novembro de 2011. Depois de termos debatido com Edgar Morin na Gulbenkian (num dia em que nos apareceu lépido, de transporte público) e de um jantar muito frugal e extremamente simpático, continuámos, o Zé e eu, a conversar sob o frio seco, na Boulevard de La Tour de Maubourg e nos Invalides. Falámos de Ciência Viva, do ESO, o Observatório Europeu do Sul, no deserto de Atacama (Chile), no qual (por sua iniciativa) Portugal tem tarefas de auditoria. E continuámos a lembrar o que Morin nos dissera: a natureza está cheia de exemplos de metamorfoses. A lagarta encerra-se na crisálida, num processo de reconstrução. A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. A radicalidade transformadora, liga-se à conservação da vida. Sendo impossível travar os desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Na mundialização, não podemos esquecer que o local e o tribal existem como elementos, a um tempo, de coesão e de fragmentação, de proximidade e de distância. O crescimento económico sem limites torna-se insuficiente e perigoso, porque desvaloriza a proteção dos recursos disponíveis e a sua renovação. O desenvolvimento humano tem de ser integrado e capaz de ligar a coesão, a confiança, o capital social e a solidariedade. Conservação e transformação obrigam ao «conhecimento do conhecimento», como força da inovação. A catástrofe pode estar no horizonte, mas Morin insistira na resistência vitoriosa da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, o que permitiu o nascimento da democracia e da filosofia, apesar de tudo ser improvável. Do mesmo modo, disse-nos, foram inesperados o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos exemplos que nos permitem alimentar esperanças, pela capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos. Terêncio diria: nada do que é humano nos pode ser estranho. E, quando ao futuro da Europa, o mestre insistiu na ideia de comunidade, capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro.

GENEROSA COLABORAÇÃO
Nunca deixámos de cultivar o cavaqueio. Há pouco, o Zé Mariano tinha-se oferecido para elaborar o programa científico das comemorações dos setenta anos do Centro Nacional de Cultura (CNC), com a sua extrema generosidade. Estranhei nas últimas semanas o silêncio. Tinha sempre tantas solicitações… Hoje sei que ia dissimulando as dificuldades de saúde por que passava. Dizia-me que estava a ir bem… Mas, de facto, não estava. Desde os anos setenta, foi uma presença no CNC e na «Raiz e Utopia». A Helena gostava muito dele. O seu entusiasmo era a educação permanente e a qualidade na ciência e da educação para todos. Nos sessenta anos do CNC, o Presidente Jorge Sampaio outorgou a Ordem da Liberdade. Foi ele que representou o Governo na Gulbenkian e recordou o muito que o ligava à associação. Não esquecemos as suas palavras sobre o diálogo entre a cultura, a ciência e a educação. Desde os movimentos estudantis, Mariano Gago foi sempre um militante inteligente e arguto, que não baixava os braços perante as dificuldades. Foi um protagonista de primeiro plano. A história da geração académica de 1970 não poderá ser escrita sem referência ao papel que desempenhou. Engenheiro, Físico de partículas, fundador e animador do LIP (Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas), nunca deixou de ser um cientista de corpo inteiro, atento às responsabilidades cívicas. O Laboratório e a sua política científica são símbolos evidentes do que José Mariano Gago era capaz de fazer para remover montanhas. O CERN (Conselho Europeu para a Investigação Nuclear) foi a primeira organização científica internacional de que Portugal fez parte, através do LIP, cujos domínios de investigação englobam a física experimental de partículas e astro-partículas, o desenvolvimento de detetores e instrumentação associada, aplicações à física médica e computação avançada. A história do CERN iniciou-se numa célebre conversa, em março de 1947, em Princeton, entre Albert Einstein e Denis de Rougemont, em que concluíram que não haveria uma União Europeia relevante, se não houvesse progressos nos domínios científicos, de modo a tornar a energia atómica um fator de paz e de desenvolvimento. Só a determinação do diplomata François de Rose e dos cientistas Francis Perrin, Louis Broglie, Isidor Rabi e Niels Bohr permitiu avançar. Sem eles nada teria sido possível. É impressionante o conjunto de sucessos alcançados pelo CERN, desde a internet (www, com Tim Berners-Lee) à colaboração no campo da saúde (como na tomografia por emissão de positrões). José Mariano era desta escola e acreditava sinceramente que tinha de se pôr a ciência em ligação com a democracia, com a paz e o desenvolvimento humano.

CULTIVAR A EXPERIMENTAÇÃO CIENTÍFICA
«Sem pensamento, sem diálogo estruturado sobre o porquê das coisas, sem controvérsia, sem enigma, sem verdadeira experimentação, não há ciência nem experimentação científica». Não podemos falar do desenvolvimento científico em Portugal sem o papel insubstituível desempenhado pelo José Mariano Gago – desde a JNICT, até aos quatro governos constitucionais em que esteve, numa longevidade fecundíssima. Basta vermos as estatísticas, os progressos. Um amigo do país vizinho exprimiu-me o seu assombro pelos resultados obtidos, graças à persistência do Zé. Quando lhe punha um problema novo, dizia invariavelmente: «Deixa-me pensar!». A reflexão e a ponderação eram a sua marca. Pensava, dizia e fazia. Não deixava cair os problemas. Quanto tempo de bom convívio… Muitas vezes me chamava para partilhar dificuldades ou dúvidas. Um dia, demorámos horas a subir e a descer a Rua Garrett, para solucionarmos um dilema. Vários amigos passavam, e ficavam intrigados, sobretudo porque percebiam que em alguns momentos nada dizíamos um ao outro, pois era necessário que o pensamento se não perdesse. Exaustivamente, vimos todos os argumentos, nada ficou por ponderar. E a decisão foi tomada, e achámos ambos ter sido a melhor… Outra vez, ficámos num longo silêncio de sentida dor quando o nosso querido amigo Fernando Gil morreu (e ele quis que eu soubesse, logo que ele teve a terrível notícia). Foi das pessoas mais inteligentes com quem convivi, e sempre beneficiei do seu bom conselho… Agora, não tenho mais palavras. Não sei com quem vou contar para fazer o que tínhamos combinado. José Mariano, está prometido, não deixaremos de ir para frente! Edgar Morin espera-nos nos Invalides… Um grande abraço e obrigado por tudo!
NOTA – Releia-se o texto de 1979 de «Raiz e Utopia»: «Educação permanente é adquirir espaços anteriormente vedados, aceder a práticas novas, descobrir-se vocações, desejos, capacidades». É a abertura de horizontes e o sentido crítico que estão em causa!

Guilherme d’Oliveira Martins

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