REFLEXÃO DA SEMANA
De 4 a 10 de Julho de 2005
Visitei Kazan, a cidade mais importante do povo tártaro, lugar de encontro de várias culturas, ponto mais ao norte a que chegou a influência muçulmana no século X. Alguns associam os tártaros a Gengis-Kan, confundindo-os erradamente com os mongóis. Se é verdade que Kazan teve um grande relevo no tempo do império mongol, em especial no período da chamada Horda Dourada (1256-1400), o certo é que o povo tártaro, célebre pelas suas qualidades militares, é de origem turca. De facto, a prevalência étnica é das tribos turcas instaladas na chamada Bulgária do Volga, de fala Kipchak, que se desenvolveu na estepe a norte do mar Cáspio, limitada a leste pelos montes Urais. Kazan comemora este ano o milenário da sua fundação e organizou um conjunto de iniciativas, a que se associou o Conselho da Europa, através das Jornadas Europeias do Património (JEP). O Kremlin de Kazan, situado no centro histórico da cidade, está classificado pela UNESCO como património da humanidade, e esse facto foi pretexto para reunir os coordenadores nacionais das JEP… Estamos em plena estepe russa, a oitocentos quilómetros de Moscovo e para lá da cidade livre de Nizhniy-Novgorod, o mítico centro comercial que abria as portas ao comércio do continente asiático. A Europa parece ficar distante e no entanto ainda temos os pés assentes no velho continente, numa zona em que as torres dos diferentes templos nos querem dizer que estamos numa encruzilhada de convicções e de ritos. Catedrais, mesquitas, sinagogas dão uma imagem que contrasta com a história dramática deste povo. A história da estepe é feita de investidas e invasões. No século XV, Tamerlão estendeu até aqui o seu império, com mais uma onda de destruições e submissões. Em 1526, o Barão Herberstein disse dos habitantes de Kazan: “Estes tártaros são mais cultos do que outros, cultivam os campos, vivem em casas, dedicam-se a vários comércios e raramente à guerra”. Kazan era a capital do Oriente, construída segundo um estilo oriental. A Catedral de Santa Maria, no perímetro do Mosteiro Ortodoxo de Raifa, recorda-nos que, a partir de 1552, houve uma forte e violenta campanha de russificação, da cidade e da região, tradicionalmente muçulmanas. Foi, aliás, em Kazan, depois da conquista deste lugar simbólico do império mongol, que Ivan adoptou para si e para os seus descendentes o título de Czar. Mais tarde, segundo um decreto de 1713, todos os muçulmanos deveriam em seis meses converter-se à religião ortodoxa, sob pena de perderem as terras, os domínios e os servos para o Czar. Iniciou-se então um longo período de perseguições, de demolição de templos e de proibição absoluta do ensino e do uso da língua tártara. Só a partir de 1784, com Catarina II, é que abrandou este clima de terror, tendo a Czarina autorizado a construção de uma nova mesquita na cidade. Foi o tempo do recrudescimento da religião islâmica e do uso da língua tatar. Na fronteira oriental da Europa é interessante ver que o espírito europeu é visto aqui como sinónimo de cultura e de liberdade – apesar de todas as crises que vivemos. Eis o outro lado da memória patrimonial, a que importa estarmos especialmente atentos, para evitar que se alimente o esquecimento…
Mesquita Kul Sharif