O emblemático projeto «Mar Novo» (1956), no qual intervieram o Arquiteto João Andresen, Júlio Resende e Barata Feyo, vencedor do concurso para o memorial a instalar em Sagres, não foi concretizado por miopia política e ausência de perspetiva histórica. Ele constitui uma referência que não pode ser esquecida, em especial quando celebramos o centenário de Júlio Resende. E temos na memória os versos de Sophia de Mello Breyner Andresen, que jamais esqueceremos: «Nenhuma ausência em ti cais de partida. / Movimento ritual – surdo rumor de búzios – / Alegria de ir ver o êxtase do mar / Com suas ondas-cães, seus cavalos / Suas crinas de vento seus colares de espuma / Seus gritos seus perigos seus abismos de poema…». Não por acaso, Sophia intitulou estes versos de «Poema inspirado nos painéis que Júlio Resende desenhou para o Monumento que devia ser construído em Sagres». São uma homenagem forte e inesquecível. Há aqui, simultaneamente, um grito heroico e uma expressão incontida de revolta pela não construção de uma memória viva e atual. Mas o poema imortaliza Sagres, o Infante, os artistas portugueses e a força unificadora do Mar na independência portuguesa.
Júlio Resende (1917-2011) tem a inconfundível marca da cultura portuguesa – não de uma cultura fechada, mas de uma criatividade aberta e apelo perene de aventura («alegria de ir ver o êxtase do mar»). A sua obra é uma rica encruzilhada de influências e uma janela sobre um Portugal definido por uma modernidade caldeada pela compreensão das raízes. A obra de Júlio Resende fala, assim, por si, como demonstração de coerência, de excecional talento e de compreensão de uma memória futurante sempre temperada por uma identidade dinâmica, antiga e nova, dotada de uma personalidade rica aberta ao tempo e ao mundo. Formado na Escola de Belas-Artes do Porto foi discípulo de Dórdio Gomes. Na sua juventude dedicou-se com assinalável sucesso à ilustração, como pioneiro da banda-desenhada – com as inconfundíveis histórias de Matulão e Matulinho no «Janeiro» e as ilustrações no «Papagaio» e no «Tic-Tac». São notáveis esses apontamentos de humor e génio. Em 1943 promove e participa no grupo de Independentes, com Júlio Pomar, Nadir Afonso e Fernando Lanhas. Em Paris, a partir de 1948, vai trilhar os caminhos expressionistas e cubistas, num experimentalismo que culmina num caminho próprio de síntese entre o figurativo e o abstrato. É discípulo de Duco de La Haix e de Othon Friesz, aprende a técnica afresco e frequente o Louvre, em contacto com os mestres maiores da pintura.
Primeiro no ensino secundário e depois na Escola de Belas-Artes do Porto afirma-se como um verdadeiro pedagogo, capaz de articular a busca pessoal de novos caminhos e de suscitar por parte dos seus discípulos uma procura pessoal de caminhos inovadores. Fora da lógica estrita das escolas ou das influências exclusivas, o expressionismo de Resende é pessoalíssimo, revelando-se o artista como um verdadeiro protagonista de um estilo e método inolvidáveis, que o singularizam no nosso panorama artístico. Vergílio Ferreira, Júlio, Charrua, Almada Negreiros e Eduardo Viana são criadores com quem convive – como mais tarde acontecerá com Jorge Amado. Na Noruega encontra Oddvard Straume. O mar torna-se um tema recorrente e a gente da beira-mar domina a sua criação. Nos anos cinquenta fixa-se no Porto, pinta o afresco da Escola Gomes Teixeira, cria as Missões Internacionais de Arte, organiza exposições sobre Arte Portuguesa, em Oslo e Helsínquia. Executa o Painel para a «Exposição Internacional de Bruxelas» (1958), realiza os painéis de azulejo para a Estação de Caminho de Ferro de Vilar Formoso. Depois da experiência no ensino secundário e da formação em ciências pedagógicas, leciona na Escola Superior de Belas-Artes do Porto (1958), onde presta provas públicas para provimento em lugar definitivo (1962). São múltiplos os trabalhos neste período: nos Palácios de Justiça do Porto e Lisboa, no Tribunal da Anadia; criando os cenários para o Auto da Índia e Auto da Alma, de Gil Vicente para o Teatro Experimental do Porto (TEP) ou para «Fedra» de Racine e «Antígona» no Teatro Experimental de Cascais. Ilustra «Aparição» de Vergílio Ferreira – sendo premiado na Bienal de S. Paulo na categoria de Artes Gráficas. Realiza o cenário e figurinos para o bailado «Judas», coreografado por Águeda Sena para a Companhia de Bailado da Fundação Gulbenkian (1968). Participa no filme «Cântico Final» de Manuel Guimarães, adaptação do romance de Vergílio Ferreira. Concebe e executa os vitrais para a Igreja de Nossa Senhora da Boavista no Porto (1984) e para a Igreja da Cedofeita («Ressurreição», 1990). Realiza o Painel «Ribeira Negra» (1984) que será executado em grés no Porto, tornando-se referencial (1986). Em 1989 tem lugar a Exposição retrospetiva na Gulbenkian. Em 1993 é criado o «Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende», cuja sede é inaugurada em 1997. «A consciência mais aliciada levou-me a verificar que as hesitações de percurso, uma vez eliminadas, tornavam mais claro o (…) trajeto, que iniciado nos anos 30 cobriam 60 anos nos quais a dominante expressionista respondia necessariamente à minha natureza de homem» – Júlio Resende disse-nos assim como viu o seu caminho de coerência e de vitalidade. E, em bom rigor, esse expressionismo, menos do que uma marca geral, é uma manifestação plena de uma personalidade inconfundível, para quem as pessoas, a natureza, as paisagens se entrecruzam naturalmente – tornando-o inconfundível, português e universal, como os nossos melhores… Júlio Resende é um português que soube fazer da sua arte uma voz de dimensão universal…
Guilherme d’Oliveira Martins
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