A Vida dos Livros

De 30 de outubro a 5 de novembro de 2017.

O filme Peregrinação de João Botelho sobre a obra imortal de Fernão Mendes Pinto é um projeto literário, um filme de aventuras e uma epopeia musical. Segundo o cineasta, tratou-se de transmitir o encantamento da Peregrinação, através de uma ideia de descoberta e de diáspora, de encontro com os outros, que podem ser animais fabulosos ou pessoas diferentes. 

UMA TAREFA DIFÍCIL

Foi uma tarefa necessariamente difícil que não estaria ao alcance de qualquer um. A experiência de João Botelho e a sua sensibilidade cultural e histórica permitiram-lhe fazer uma obra que corresponde ao que dela se exigiria, abrindo para o grande público a oportunidade de tomar contacto com uma das obras mais importante da literatura mundial – pioneira no que respeita à narrativa. O autor não caiu, porém, na tentação de nos dar um relato exaustivo de uma obra longa, cheia de episódios relevantes e impossível de sintetizar num filme de hora e meia. Estamos, assim, perante uma verdadeira introdução à leitura e à compreensão desta obra-prima da nossa literatura, com uma encenação que recorre à experiência operática, com um coro (à maneira grega), que pontua momentos fundamentais, a cantar Fausto em Por Este Rio Acima. Recorde-se que este trabalho de Fausto, de 1982, integra a trilogia “Lusitana Diáspora” e baseia-se nos textos de Mendes Pinto, sendo considerado muito justamente um dos melhores álbuns de música popular portuguesa. Como não poderia deixar de ser, para alguém com experiência e ciente das limitações de uma tão difícil empresa, foram escolhidos alguns quadros fundamentais do livro, que são significativos, para a compreensão da presença dos portugueses no mundo.

PERCURSO DRAMÁTICO E VENTUROSO

A Peregrinação relata um longo percurso, ora dramático ora venturoso, de vinte e um anos pelo Índico e Ásia, sendo o autor soldado, negociante, pedinte, embaixador, cortesão, jesuíta e pirata, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia feliz, China, Tartária, Macassar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago, dos confins da Ásia, a que os escritores Chins, Siameses, Gueos, Eléquios nomeiam nas suas geografias por pestana do mundo…”. Eis a saga de um português do século XVI, que pôde chegar às nossas mãos graças a uma narrativa talentosa, que nos permite hoje ter uma ideia do que foram as dificuldades históricas dos portugueses além-mar, mas também perceber como a Peregrinação se tornou uma obra de referência a partir do momento em que foi publicada, como verdadeira matriz para quantos desejassem aprender a viajar e a descobrir o mundo. Hoje, a moderna historiografia deu verosimilhança ao livro publicado postumamente em 1614, ficando claro que na literatura mundial é um texto pioneiro, em diversos domínios, ombreando com a obra de Miguel de Cervantes no abrir de novos caminhos para toda a literatura. Longe vão, felizmente, os tempos em que havia quem achasse que a Peregrinação era um livro de fantasias. Pelo contrário, estamos perante uma narrativa bastante próxima da realidade – sem cujo conhecimento não podemos completar e entender o que consta nas obras de cronistas como João de Barros e Diogo do Couto. Como afirmou Adolfo Casais Monteiro, “a ficção como género literário, tanto se cria à base de verdade como de invenção”. O interesse romanesco e a componente pícara desta obra são evidentes, e o filme dá essa tónica com especial felicidade. Nem falta um malaio, que conhece as várias línguas, e que se assemelha a Sancho Pança… A diversidade de personagens, a própria capacidade de “desdobramento” de Fernão Mendes Pinto não é tanto sinal de imaginação fértil, mas sim de uma capacidade singular de entender a complexidade e a diversidade da presença portuguesa na Ásia – onde os soldados e os missionários estavam ombro a ombro com os mercadores, corsários e mercenários, e as intervenções da Coroa e da Igreja Católica coexistiam com as iniciativas privadas dos comerciantes, dos arrivistas e dos piratas…

ESCRUPULOSO RESPEITO PELO AUTOR

O cineasta esteve bem consciente de todas as dificuldades que se lhe colocavam – desde as vicissitudes históricas à extensão e complexidade do livro e dos seus relatos. Daí ter respeitado a orientação do autor quanto ao fulcro das diferentes partes da obra. A presença de António Faria é bem ilustrativa disso mesmo. Contando com o desempenho do mesmo ator (Cláudio da Silva), João Botelho e Fernão Mendes assistem aos acontecimentos que envolvem o temível corsário, irrascível e violento, apagando-se e ficando de fora ele mesmo, ou seja, o autor-narrador. Aliás, havendo um flashback na construção da narrativa do filme, percebe-se que, sendo o ator o mesmo, as personalidades que representa são diferentes. Como Aquilino Ribeiro e Donald Fergusson disseram, e está assumido por Botelho, “imaginamos que Mendes Pinto e António Faria são uma e a mesma pessoa. Mendes Pinto teve pejo de se exibir antigo capitão de corsários e pôs a máscara”. António Faria, o vencedor de Coja Acém, é provavelmente uma invenção de Fernão Mendes, até porque dificilmente encontramos essa figura na vida real, correspondendo, por certo, a uma composição, em que o real não pode deixar de ter importância, mas em que prevalece a prevenção do autor relativamente a eventuais represálias. Com efeito, não se sabe até que ponto a pendência da candidatura à tença d’el Rei não pesou aqui, protegendo-se o autor, com receio de perder a benesse. Note-se que no livro e no filme António Faria desaparece misteriosamente, sem grandes pormenores. Se no início da obra não há dúvidas sobre quem protagoniza os acontecimentos, o “eu, pobre de mim”, o mesmo ocorre depois do desaparecimento de António Faria. Fernão Mendes Pinto regressa em pleno à ribalta. Os primeiros europeus chegam ao Japão, a introdução da espingarda causa espanto e drama, há o encontro com S. Francisco Xavier, o padre Belchior considera Fernão Mendes bem-aventurado. Temos em pano de fundo a agitação do continente asiático, e João Botelho aproveita para nos apresentar belas imagens colhidas no misterioso continente – num inteligente equilíbrio na apresentação da diversidade de situações. Se há muitas imagens recolhidas em Portugal, a equipa esteve em sete cidades chinesas (como Leshan), em Macau, na Índia, no Japão, na Indonésia, na Malásia e no Vietname. Julgo que João Botelho conseguiu um dos objetivos que se propôs: “encontrar uma empatia emocional e verdadeira com as pessoas a que o filme se destina”. De facto, ao trazer para o grande público, através do cinema, uma obra máxima da literatura portuguesa, alcança o desiderato de nos pôr perante o belo e difícil projeto de compreender os portugueses ao encontro da sua história. É um filme com indiscutível valor artístico, nítida exigência quanto ao texto e ao bom uso da língua, sentido pedagógico, na continuidade de um percurso muito rigoroso do cineasta em matéria de valorização das culturas da língua portuguesa… 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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