A Vida dos Livros

De 30 de novembro a 6 de dezembro de 2015

«Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitetura e Urbanismo» sob a direção de José Mattoso (3 volumes, Gulbenkian, 2010, Índices, 2011) é uma obra fundamental que deu origem ao “H.P.I.P. – Heritage of Portuguese Influence Portal – Património de Influência Portuguesa” e que constitui um instrumento precioso para o conhecimento de uma cultura repartida pelo mundo. Hoje recordamos a obra a propósito da última etapa da viagem do CNC à Malásia e Tailândia.

MEMÓRIA TAILANDESA

Volto à peregrinação do Centro Nacional de Cultura em Sirião e Sião. O antiquíssimo reino da Tailândia é um dos marcos mais interessantes das relações de Portugal com o Oriente. Depois da conquista de Malaca, em 1511, Afonso de Albuquerque cedo estabeleceu relações com o mítico reino, através de Duarte Fernandes, considerando as potencialidades dos povos gentios. Daí ter enviado, pela relevância estratégica do território, um Embaixador a Aiútia, investido de poder e representação, António Miranda de Azevedo foi recebido pelo próprio rei de Sião, que lhe mostrou um magnífico elefante branco e o presenteou com uma inusitada coleção de sinos. Em 1544, já havia comércio com portugueses vindos de Goa, de Malaca e da Malásia, e diz a tradição que o rei se teria feito batizar cristãmente… Sabemos ainda, segundo Martim Afonso de Melo e Castro, que havia em 1565 dois mil portugueses a viverem no Oriente, na China, Pegu, Bengala, Orissa e Sião. Um século depois, encontramos uma comunidade portuguesa estabilizada no bairro português, o «bandel» (Bang Portuguet) de Aiútia com cerca de duas mil almas, que desenvolveu um fecundo processo de miscigenação com siameses, chineses, peguanos e japoneses. A concessão régia do bairro (c. 1540) foi preito de gratidão pela ajuda de mercenários portugueses nas guerras contra a Birmânia. A presença religiosa católica iniciou-se com a chegada de dois frades dominicanos, Frei Jerónimo da Cruz e Frei Sebastião do Canto, seguindo-se em 1584 os franciscanos e em 1606 os jesuítas. A comunidade cedo encetou um processo de miscigenação com siameses, chineses, peguanos e japoneses. Os luso-descendentes exercem funções de intérpretes e de funcionários administrativos ao serviço do Rei de Sião. Portugueses e japoneses em Aiútia eram tão próximos que D. Maria Guiomar, uma luso-japonesa teve grande influência, ao casar-se com o grego Cristóvão Falcão, que foi Primeiro-Ministro do Reino.

A IMPORTÂNCIA DE MACAU
Quando as relações entre Portugal e o Japão entraram em decadência, houve tentativas infrutíferas dos mercadores portugueses para recuperarem uma presença seriamente comprometida, através da mediação e de um entendimento com Sião. No entanto, através de Macau houve passos decisivos para a sustentabilidade da comunidade luso-siamesa, o que permitiu que os mercadores portugueses mantivessem influência económica e política significativa em Sião. As comunidades lusodescendentes mantiveram-se graças à coesão religiosa e ao comércio interasiático que teve como centro de gravidade a presença das comunidades de luso-descendentes, desde Malaca às costas da China, tendo o Reino de Sião tido um papel mediador importante. No final do século XX, houve importantes pesquisas arqueológicas, apoiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, sobre os vestígios da igreja de S. Domingos (representada no mapa do missionário francês Courtalin) de estilo europeu, com tijolos e argamassa de cal, possuindo três naves. A entrada principal, orientada para leste, abria-se em direção ao átrio, enquanto as entradas laterais possuíam escadas flanqueadas por balaustradas, de cada lado. Nas traseiras havia um claustro, onde estavam os aposentos dos missionários, a cozinha e o refeitório.

DE FEITORIA A EMBAIXADA
A atual Banguecoque nasceu sob a influência de Aiútia, reunindo duas cidades que foram crescendo em importância – Thonburi e Rattanakosin. Para os portugueses, o Bairro e a Igreja do Rosário lembram a vinda de Aiútia. Tratou-se de uma concessão do rei Rama I, como gesto de «gratidão à rainha D. Maria I, pela sua amável generosidade, símbolo de boa vontade que não poderá ser esquecido até ao fim do mundo» (1787). Os primeiros edifícios religiosos eram frágeis, só mais tarde foi usado o tijolo, a pedra e a cal. Através de Macau, houve apoio decisivo para a sustentabilidade da comunidade luso-siamesa, o que permitiu que os mercadores portugueses mantivessem influência económica e política em Sião. A feitoria portuguesa e as igrejas do Rosário, da Conceição e de Santa Cruz (Thonburi) são reminiscências da velha amizade. Na capital tailandesa, a hospitalidade dos Embaixadores Luís e Maria da Conceição Barreira de Sousa foi inexcedível, com sublime benefício de um pôr-do-sol muito especial nas margens do rio Chao Phraya, depois de um agradabilíssimo jantar. O edifício da Embaixada é de estilo neoclássico, tendo o terreno sido atribuído a Portugal, pelo Tratado de 1820, durante o reinado de Rama II, para a «Feitoria dos portugueses» e residência do Cônsul, Carlos Manuel da Silveira. Tratou-se de «um chão que lhe pareceu próprio e conveniente com 72 braças de Sião ao longo do Rio, 50 de fundo com dois gudes para fazer navios com privilégio que todos os Portugueses poderão vir aqui negociar como antigamente, por quanto S. Majestade é Inclinado à Nação Portuguesa que a nenhuma outra». O lugar é marcante, e não é por acaso que se trata da mais antiga Embaixada dos países acreditados na capital tailandesa – representando sinal de uma ancestral amizade, cuja importância chega aos nossos dias e sempre com uma veneração muito afetuosamente sentida.

ORGULHO NA ANCESTRALIDADE
Na visita à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, o Senhor Monopchai Vongphakdi, alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Tailândia, acompanhado de sua família, recebe principescamente, mostrando o Bairro onde residem os cristãos de ascendência portuguesa. A Igreja e o cemitério recordam a nossa presença e, para que não haja dúvidas, aí estão as inscrições em português e as referências a nomes bem familiares, como os Ribeiros e os Costas. A peregrinação prossegue por via marítima até à outra margem do rio para a visita do Bairro e da Igreja de Santa Cruz, onde a receção foi inolvidável, com um grupo de estudantes a darem as boas-vindas: «Sejam bem-vindos os representantes de nossos antepassados!». Um português sente-se, de facto, em casa. Se hoje o comércio já não se faz no «papiar cristão», a velha língua franca, o certo é que a memória ainda existe, até do tempo em que americanos e siameses celebraram um tratado em língua portuguesa, porque era a única que poderia ser entendida pelos dois interlocutores. Contudo, os símbolos fundamentais do encontro com a distante cultura europeia estão bem vivos, por exemplo, no património imaterial, nos hábitos e costumes. E a ligação ancestral permite também enriquecer o conhecimento da história tailandesa até ao final do século XVIII, até considerando a destruição de Aiútia em 1767. Daí a importância dos textos de Fernão Mendes Pinto, de Duarte Barbosa, de Damião de Góis, de João de Barros e de António Bocarro, além das crónicas religiosas. Que é a memória cultural, afinal, senão a possibilidade de haver encontros memoráveis (de pessoas ou de obras de arte), muitos séculos depois dos contactos originais e das primeiras raízes antigas?

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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