A Vida dos Livros

De 30 de março a 5 de abril de 2015

«O Mundo é uma coisa estranha, afinal» de Jean d’Ormesson (Guerra & Paz, 2015), apesar de vir apresentado como um romance, é um ensaio em que o autor partilha com os seus leitores uma reflexão sobre a vida e a morte. Estamos perante um caminho reflexivo de sentido bem atual num momento em que o «vazio de valores» põe em causa a importância das Humanidades.

O TEMPO ESSE ESTRANHO PROTAGONISTA
Ao longo da obra de Jean d’Ormesson, o tempo é o grande protagonista. E, naturalmente, Santo Agostinho é lembrado na sua célebre afirmação: «Se não me perguntares em que consiste o tempo sei dizer em que consiste. Mas se mo perguntas, deixo de sabê-lo». Seiscentos anos depois, Stephen Hawking também diz: «É impossível dizer em que consiste o tempo» Por não ocupar espaço, por não possuir nem massa nem temperatura, nem odor, nem sabor, parece ser o paradigma da abstração, que se confunde com tudo e nada… No entanto, é o grande mistério. Esse o seu mistério. Para nós, que vivemos o dia a dia, é fundamental. Os nossos relógios e agendas parecem de uma regularidade exasperante, mas, de facto, tudo isso é muito mais complicado do que parece à primeira vista. Basta olharmos o espaço e percebermos que muitos dos corpos celestes cuja luz vemos, há milhões de anos que se encontram extintos. Há algumas horas, quando entrámos na hora de verão, quase nada tivemos de fazer, pois os nossos telemóveis e computadores se encarregaram de fazer por si as adaptações necessárias. Apenas tivemos de nos preocupar com os ancestrais relógios mecânicos… E o romancista interroga-se sobre os mistérios que nos rodeiam. Não sendo um cientista, procura compreender o inimaginável. Max Planck leva-nos aos primeiros segundos após o «big-bang»: o que virá a tornar-se o nosso universo era então dez milhões de mil milhões de mil milhões de vezes mais pequeno do que um átomo. Não vale a pena tentarmos perceber, porque o tempo de um flash de uma máquina fotográfica é imenso junto desse estranho «muro de Plack», que nos leva a deambular no infinitamente pequeno. Esse ínfimo começo põe-nos a questão de dizer que «aquilo que está atrás do muro de Planck é algo diferente de tudo o que podemos imaginar ou mesmo conceber – talvez uma realidade de outra natureza e de outra ordem, mais ou menos comparável à coisa em si de Kant». Pascal falava-nos do infinito que nos precede e no infinito que nos sucede… E se falamos da teoria quântica que só se aplica ao infinitamente pequeno, temos de chegar à teoria da relatividade geral de Albert Einstein que apenas se aplica ao infinitamente grande…

COMPREENDER O INCOMPREENSÍVEL

«O mundo no qual vivemos não é apenas inesgotável. Com a luz, e com o tempo, mistério dos mistérios, e com essa coisa inaudita que é a vida, e essa mais inaudita ainda que é o pensamento, o mundo é também, e sobretudo, inverosímil». A imaginação de qualquer romancista revela-se infantil ao lado dos grandes mistérios do universo. As leis da ciência e da natureza são necessárias e arbitrárias. Eis a justificação de todos os paradoxos… E a vida é o mais banal dos milagres. Escapa a qualquer definição. Por isso, as descobertas científicas baseia-se tantas vezes num ápice intuitivo… Charles Darwin limitou-se apenas a entreabrir uma pequena fresta no conhecimento em «A Origem das Espécies», contudo hoje chegamos a um antepassado universal e comum de todos os seres vivos: uma célula batizada LUCA (Last Universal Common Ancestor). Einstein segreda-nos: «Aquilo que há de mais incompreensível é o mundo ser compreensível». E inesperadamente Leibniz – o mesmo que pergunta «cur aliquid potius nihil?» («Porque há algo em vez de nada?») – afirma-nos que o mundo é composto por átomos impercetíveis e indestrutíveis – mónadas -, que refletem todo o universo, que está assim presente em cada um dos seus pontos. Assim, Einstein procurou encontrar a conexão entre Universo e pensamento, estabelecida desde o começo… Deste modo, no caminho ao encontro do começo das coisas encontramos três elementos essenciais: a inteligência humana, capaz de descobrir os segredos do Universo; a luz, que nos permite viver sob o Sol e distinguir os seres e as coisas à nossa volta – apesar de viajar lentamente, considerando a imensidão do espaço. «Vemos o Sol tal qual ele era há oito minutos, a galáxia Andrómeda tal como era há dois milhões de anos, o enxame de galáxias Virgem tal como era há quarenta milhões de anos, os quasares nos confins do Universo como eram há uma dezena de milhões de anos»… E o terceiro elemento é o tempo, sobre que já mostrámos a nossa perplexidade e as suas extraordinárias virtualidades… Jean d’Ormesson, o escritor de romances sobre a efemeridade do tempo e das mentalidades, como «Au Plaisir de Dieu», sobre um castelo que conheceu bem durante a infância e sobre os seus fantasmas, põe-se no centro das suas próprias interrogações, entre Espinosa, Pascal, Montaigne e Leibniz – jogando com as perplexidades de Albert Einstein e Max Planck. E refere-nos o golpe de génio do cristianismo, ao assumir o «que o distingue de todas as outras religiões» – a Encarnação.

VIVER É MORRER…

«Aquilo que Deus quer não o sabemos. Aquilo que Cristo nos diz é que devemos amar Deus e os homens». O romancista não cai na apologética, até porque se situa numa posição de serena, mas persistente, de dúvida. «O autor é agnóstico. Não sabe. Gostaria muito de saber». E, bem a propósito, cita Charles Péguy: «Os nossos conhecimentos nada são ao pé da realidade cognoscível, e são talvez menos ainda ao pé da realidade incognoscível». Tertuliano disse: «Credo quia absurdum», «Creio apesar de absurdo», e tudo está aqui resumido. Não há provas. E conta-se a anedota sobre Bertrand Russell. Alguém lhe perguntou, apesar de não crente, que diria quando chegasse ao juízo final perante Deus. E ele respondeu: «Nesse caso, dir-Lhe-ia que não havia provas suficientes…». O mundo é um enigma e a realidade um sonho. De Shakespeare a Calderón de la Barca, tudo está dito e redito. «A ciência decifra o sonho e faz também parte dele». Pirandello não diria melhor. E chegado aos limites, d’Ormesson leva-nos até ao mistério da morte, convidando o português Espinosa a partilhar a interrogação fundamental. «A mortalidade não é uma coisa evidente. Um homem ou uma mulher, jovens e de boa saúde, têm antes tendência a sentir-se imortais. Por uma espécie de milagre, que o mais das vezes se deixa passar em silêncio, cada um de nós pensa e age como se não fosse morrer. Espinosa acrescenta: “O homem livre em nada pensa menos que na sua morte, e a sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida»… Afinal, não morreremos um dia, vamos morrendo. Montaigne dizia que a filosofia era essa aprendizagem. E o poeta de «Le Soulier de Satin» pôs na sua campa a seguinte inscrição: «Aqui repousam as cinzas e a semente de Paul Claudel». Jean d’Ormesson, placidamente, faz deste romance-ensaio uma interrogação sobre os limites, a incompreensão, as incertezas e as dúvidas… Depois de nos trazer a loucura de Alcibíades, símbolo da beleza e da sublimidade, conduzindo o sucesso ao desastre, lembra ainda Einstein a mostrar-nos que «a experiência mais bela é a do mistério»… Cada palavra diz-nos o que baila no espírito de cada um…

Guilherme d’Oliveira Martins

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