DAS FICÇÕES À LUZ DO ÁRTICO
As duas séries que Cruz-Filipe apresentou na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva – «Ficções» e «Luz do Ártico» correspondem a uma continuidade e a uma emancipação reveladoras do processo criativo dinâmico do autor, no qual o tratamento da imagem procura permanentemente criar um diálogo de formas, de elementos e de sensações em que a natureza e a cultura se confrontam e completam. Em «Ficções» deparamo-nos com o retomar do ciclo iniciado em 2007, marcado pela paisagem. Adensa-se, assim, o que Vasco Graça Moura (atento observador da obra do artista) designou como o «jogo técnico e conceptual entre a pintura e a fotografia e as suas reverberações recíprocas». E são essas reverberações que importam ao pintor, agora na sua maior pureza e sobriedade. Segundo Marina Bairrão Ruivo: «as obras tendem para uma desejada abstração e a pintura volta a prevalecer, mantendo uma ilusão fotográfica, ganhando agora em unidade com o diluir das divisões temporais». Sente-se a coerência da criação do artista que se aproxima da natureza depois da abordagem romântica, culta e erudita, da sombra humana. Esta esconde-se sem deixar de ter uma subtil presença – porque é característica fundamental de Cruz-Filipe a referência à pessoa humana, mesmo que aparentemente ausente, mas sempre adivinhada. Fernando Azevedo falou, por isso, certeiramente, de «suporte de ausências» na obra do pintor, o que constitui um elo estável de unidade e coerência, nos desmedidos silêncios.
NOS BRAÇOS DO TEMPO
Como escrevi em tempos, a arte de Ricardo Cruz-Filipe continua a levar-nos «nos braços do tempo. Cultiva as metáforas vivas e a serena contemplação das coisas e das pessoas. Em cada novo quadro há uma intensidade diferente que nos arrasta – e que nenhuma figura de estilo resumiu. Há um diálogo entre tempos, entre ambientes e sentimentos. É o espírito que se revela nos mágicos espelhos deste pintor, de quem Eduardo Lourenço disse ser ‘um homem de pudor e reserva todo entregue à magia objetiva de sonhar perfeitamente acordado’. Nele não há ‘algures inacessível’. Há o pequeno gesto. O ambiente. E a memória do homem que habita o tempo inequívoco revelado pelo esplendor da representação» (DN, 26.12.1986). O elemento ficcional é necessariamente pessoal. É a sensibilidade criadora e recriadora que podemos apreender quando entramos na relação com uma narrativa inesgotável. E, como disse Bernardo Pinto de Almeida, em Cruz-Filipe estamos na presença de um «pintor culto e de culto», para quem o intenso trabalho de inovação e de pesquisa, que o caracteriza, reforça o rigor dos passos do caminho. O diálogo, agora evidente, com a intensidade silvestre é, no fundo, um intercâmbio evidente em que o olhar humano dá sentido à simbiose das formas. Mas não estamos perante paisagens lunares, desumanizadas, mas em face da projeção da existência criadora da humanidade, na expressão da natureza. E assim ouvimos a lição dos românticos. Sentem-se intensamente as palavras de Lamartine: «La poésie sera intime surtout, personnelle, méditative et grave, … l’écho profond, réel, sincère… des plus mystérieuses impressions de l’âme. Ce sera l’homme lui-même et non plus son image, l’homme sincère et tout entier…». E assim as «Ficções» são completadas pelas fotografias belíssimas de uma viagem ao Ártico, selecionadas por se aproximarem do universo onírico do primeiro núcleo. Deste modo, encontramos um fio de Ariadne que não ilude a diferença do método e da experiência.
FOTOGRAFIA SEM MEDIAÇÃO
Para João Pinharanda, «passou a perceber-se melhor o uso que Cruz-Filipe sempre fez da fotografia e, notoriamente, o papel que a fotografia tem nas suas pinturas mais recentes, a partir do momento em que o artista decidiu expor, sem qualquer mediação histórica, fotografias da sua autoria». Neste sentido, esta mostra trouxe-nos uma revelação que permite entender talvez melhor (como se tal fosse necessário, e não o é) a originalidade perene da obra do artista. Quando a paisagem assume progressivamente uma presença mais forte e evidente, o certo é que a recordação da encenação dos dípticos, método conhecido do pintor pelo qual revela o contraste entre a ficção e a realidade, dá agora lugar a uma participação maior da qualidade ficcional na realidade ela mesma. Nas fotografias apresentadas, sobretudo considerando a sobreposição de imagens e a existência de zonas evidentes de transição, em que não sabemos exatamente onde se encontra ou não a mão ou a influência recriadora do criador, há «o sentido da rarefação (ainda segundo Pinharanda) que associamos aos desertos, uma escassez de elementos referenciais do espaço, uma estranha escassez de horizontes, um enfrentamento de brilhos gelados, transparências aquáticas e opacidades telúricas, o sentimento de um varrimento das superfícies por ventos e glaciares – tudo isto resulta na mesma devastação de alma e corpo que interessava ao romantismo». E, como já se disse, se somos levados ao romantismo literário, percebemos que Cruz-Filipe pratica uma procura insistente de harmonia a partir do choque de sentimentos contrastados e contraditórios. Sente-se, claramente visto, «l’écho profond, réel, sincère…». Voltando a João Pinharanda, «a valia conceptual das imagens reside (…) quer na convocação de uma pesada erudição (…) quer na convocação, recente, de uma visualidade mais pura fundada em construções paisagísticas totais».
EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL
Foi uma experiência inesquecível a da visita compassada à exposição, com a cuidadosa preocupação do autor de não dizer nem mais nem menos do que as imagens exigiam, permitindo-nos recordar as diferentes fases, os múltiplos modos de realizar as «ficções», num caminho irrepreensível de depuração e de procura da mensagem essencial. E veio-nos, naturalmente, à lembrança a poesia de Vasco Graça Moura, como uma certa forma de melancolia, e a palavra segura de Rui Mário Gonçalves (num mundo de saudades): «a quietude e o silêncio é onde desperta uma nostalgia; e é esta que tece a interpenetração de espaços e de tempos»… Como que tudo se vai preparando, na suavidade do confronto dual entre ficção e realidade, para que a ficção se torne realidade e a realidade ficção, como na representação teatral, por exemplo de Calderón de la Barca. E o diálogo dá lugar a um só registo, mostrado na última sala da exposição, com as fotografias do próprio autor. Mas o inesperado faz-se sentir, quando o artista nos dá a ilusão de ter intervindo na paisagem natural, como no espantoso panorama «Deixando Randfjord»…
Guilherme d’Oliveira Martins