Reflexões

De 3 a 9 de Novembro de 2003

Sophia está de parabéns nestes dias de Novembro. A poesia vive, está na rua, como sereno caminho, como rigorosa medida, como intransigente programa. Há dias, o seu filho Miguel recordava-nos que o Centro foi para si durante muito tempo um lugar de referência por causa dos pais, almas, esteios, animadores incansáveis desta “instituição”. Sophia deixou aqui a sua belíssima impressão digital. Ainda hoje a recordamos como presença e fonte de inspiração…

Sophia está de parabéns nestes dias de Novembro. A poesia vive, está na rua, como sereno caminho, como rigorosa medida, como intransigente programa. Há dias, o seu filho Miguel recordava-nos que o Centro foi para si durante muito tempo um lugar de referência por causa dos pais, almas, esteios, animadores incansáveis desta “instituição”. Sophia deixou aqui a sua belíssima impressão digital. Ainda hoje a recordamos como presença e fonte de inspiração. Foi ela quem disse: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é a arte do ser” – e foi esse ser, é esse ser que nos apela e nos interroga. “Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência, nem uma estética, nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta” (Arte Poética, III). Viver, viver sempre, ver, ouvir, ler, nunca poder ignorar… A força da escrita de Sophia vem do fundo do ser, vem dos olhos abertos para o mundo e para as pessoas, vem da memória atenta e desperta, vem da obstinação da inteligência e do sentir, vem da compreensão das raízes e da importância do outro. “A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”. É o encontro com o universo concreto das coisas e das pessoas, diálogo com o mundo – desde as mais antigas referências até à realidade que nos cerca, sem nunca esquecer o sentido do ser e da existência. “O poema não fala duma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão”. É nos pequenos gestos do quotidiano, nos pormenores da vida e do mundo que vamos descobrindo o sentido de uma vida que nos transcende e que nos motiva como suplemento da alma. Sophia de Mello Breyner Andresen abre-nos, com a sua poesia, mil portas e revela-nos os mistérios da história. Eduardo Lourenço falou-nos, por tudo isto, do seu destino de Penélope, como tecedora “do mais alto dia e da mais viva esperança no meio da noite, nossa e da vida”. E que mais poderá dizer-se? Está aí a luz, a direcção, a conta, o peso e a medida da nossa Ítaca, onde o mito humano de Ulisses é revivido nesta inesgotável arte poética. “Vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida”.

Guilherme d`Oliveira Martins

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