EXPEDIÇÃO A ALENQUER
Na Galeria da Livraria Sá da Costa, pudemos ver expostas as fotografias de Luísa Ferreira e ouvir Luís Filipe Barreto e Karin Wall a invocarem os dois percursos de vida que se misturam na memória longa, uma vez que José Mariano quis que alguns dos seus últimos passos se dirigissem ao Renascentista. Tratou-se de uma expedição a Alenquer, ao encontro de Damião de Goes, no dia 9 de março de 2015, segunda-feira. “Mariano falou-me (…) sobre Damião. O grande humanista português do século XVI nasceu e morreu em Alenquer, depois de ter passado muitos anos fora do país. Foi viver para a corte aos nove anos e o Rei enviou-o para a Europa. Conviveu com Erasmo de Roterdão, entre outros pensadores, comprou e partilhou obras de arte, voltou a Alenquer onde adquiriu uma quinta e sofreu com a Inquisição”. Foi com estas referências que Luísa Ferreira aceitou o desafio de ir com José Mariano, para este olhar de frente o retrato que o próprio cronista mandara gravar na pedra. Infelizmente, o busto está hoje bastante danificado, apresentando um rosto alterado pelo tempo. Mas ele queria ver a efígie de Damião de Goes, para poder olhá-lo, para sentir a sua presença e para oferecer a sua representação à Real Academia Belga, onde dele falara. “Fotografia é estar com os outros, mostrar-lhes, ver”. E sobre o ato de registar imagens, Mariano gostava de recordar Alhazen, o físico e matemático árabe do século XI, que escreveu “o primeiro tratado decente sobre Ótica”, construindo diversas câmaras escuras como meio de experimentar um novo modo de considerar e de conhecer a visão humana…
PERCEBER PORTUGAL
Durante um ano Damião de Goes acompanhou José Mariano. A Descrição da Cidade de Lisboa (1554) era revisitada com especial prazer. Tornou-se leitura de cabeceira. O pequeno opúsculo “foi por ele escrito (na Flandres) quando todos os dias chegavam a Antuérpia galeões portugueses com especiarias das Índias – e a Europa queria perceber Portugal – e entender Lisboa”. E lembramos o que está escrito relativamente a uma cidade que rivalizava “com todas as outras cidades da Europa, tanto pelo número de habitantes, como pela beleza e variedade das construções”… É a Cidade Global, documentada na exposição do Museu Nacional de Arte Antiga, descrita pela pena de Damião de Goes. “Passando a Rua Nova do Rei, que transborda de entalhadores, joalheiros, ourives, cinzeladores, fabricantes de vasos, artistas de prata, bronze e de ouro, bem como fanqueiros; cortando à esquerda, chegaremos a uma outra artéria que tem o nome de Rua Nova dos Mercadores, muito mais vasta que todas as outras ruas da cidade, ornada de um lado e de outro, com belíssimos edifícios. Para aqui confluem todos os dias, à compita, comerciantes de quase todas as partes do mundo e suas gentes, em concurso extremo de pessoas, por causa das vantagens oferecidas pelo comércio e pelo porto”. O livrinho “deu a volta à Europa e contou o que era Lisboa nessa época (um tanto desgraçada de ódios e guerras de religião). Sendo Damião de Goes o grande humanista português do século XVI e que sempre conseguiu defender a tolerância! Contra os ódios”. É a letra de José Mariano Gago que no-lo diz. Apesar de o rosto do humanista estar deteriorado, a verdade é que é, segundo testemunhos coevos, o mais próximo da realidade. Podemos, porém, recordar o epitáfio fotografado nos finais do século XIX, na igreja da Várzea, onde se vê o busto antes de ter sido danificado. O túmulo está na igreja de S. Pedro, desde 1941, vindo da Várzea. E o próprio Damião de Goes, na descrição de Lisboa, fala-nos da sua terra natal: “A meio, pouco mais ou menos, do curso do Tejo, na margem de cá, indo para o poente, fica a fortaleza de Alenquer – a terra onde nasci -, e que, segundo Resende, os antigos chamavam Gerobriga”. Na capela de S. Pedro, em Alenquer, estão representadas as armas de Damião de Goes, dadas pelo Imperador Carlos V, e as de sua mulher D. Joana de Hargen. “Ao maior e ótimo Deus, Damião de Goes, cavaleiro lusitano fui em tempos; corri toda a Europa em negócios públicos; sofri vários trabalhos de Marte; as musas, os príncipes e os varões doutos amaram-me com razão…”. A cabeça do humanista esteve guardada durante anos até ser colocada na igreja. E conta-se que antes foi vista a rolar na rua a servir de brinquedo para as crianças… Mas José Mariano quis confrontar-se com o estado atual da pedra, sabendo que foi ela que o humanista mandou esculpir, numa representação fiel. Depois dos tratos de polé a que foi submetida, importava recordar a memória do cronista e diplomata em pelo menos três facetas: a do espírito aberto e livre, lutador pela tolerância e companheiro de outros grandes humanistas; a do português regressado à pátria, incompreendido, perseguido pela injustiça inquisitorial e porventura assassinado; e a de um exemplo maior da cultura portuguesa cujo monumento funerário foi sujeito a um ignóbil tratamento, por ignorância e desmazelo.
UMA CARTA DE ERASMO
Simbolicamente, lemos ainda no Caderno de Alenquer uma Carta de Erasmo de Roterdão a Damião de Goes. Não está aí por acaso. Sentimos o azedume das incompreensões. “Os italianos a cada passo arreganham contra mim, em opúsculos maléficos. Em Roma foi imprensa (sic) a Defesa da Itália contra Erasmo, dedicada a Paulo III. A rixa nasceu de duas palavras minhas não entendidas e que estão nesta máxima: Micónio calvo, é dizer cita erudito ou italiano belicoso, – as quais eles interpretam como tendo eu censurado os italianos por serem pacíficos, quando a verdade é que nesta expressão a Itália foi louvada e não vituperada. Comer, beber, – são vocábulos médios; comilão, beberrão, palrador – toam como vício. De igual modo, belicoso não traduz louvor, que sim exprobação. Os citas, por seus costumes bárbaros e selvagens, desprezam todas as disciplinas liberais, inclinados só para as armas; os ítalos, esses cultivam a filosofia, as artes e a eloquência, que são fomentadoras de paz, diametralmente contrárias por isso às daqueles. Eis excelente matéria de defensão”. A presença de Erasmo, que conhecemos do Elogio da Loucura, significa a um tempo a crítica às mentes intolerantes e a necessidade de esclarecer as ideias pelo diálogo franco e aberto… Fica-nos um testemunho em prol do conhecimento e da tolerância, como valores assentes no respeito mútuo. “Criticar os costumes dos homens, sem atacar qualquer pessoa denominada, será efetivamente morder? Não será antes ensinar e aconselhar? Aliás, não faço incessantemente a crítica a mim próprio?” Erasmo dixit, e poderia tê-lo feito Damião de Goes… José Mariano pede-nos para não os esquecermos.
Guilherme d’Oliveira Martins
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