UM DELEITE PARA O ESPÍRITO
Ler João Bénard da Costa é sempre um deleite. As memórias pessoais ligam-se à sensibilidade artística do maior requinte. Autores clássicos encontram-se com os pequenos segredos dos grandes pintores ou dos músicos e dos cineastas nas obras-primas que nos legaram, mas é sempre a vida que está em causa e as pessoas únicas que encontramos a cada passo, ora no dia-a-dia, ora na tela dos cinemas. O próprio João viveu uma vida mais do que dupla ou multifacetada. No cinema, encontramos a sua própria sombra, quiçá fantasmática, na figura de Duarte de Almeida. E, como diria Umberto Eco, que há pouco nos deixou, o apurado sentido histórico e a paixão pelas letras e pela literatura, pela arte e pelas imagens, pela música e pela natureza em movimento permitem viver como se se tratasse de 5 mil anos. E o certo é que nestes textos sentimos isso mesmo. Deixamo-nos entusiasmar pela fantástica maneira de nos seduzir pela forma de viver e fazer viver. O prazer habitual torna-se talvez hoje ainda mais intenso e inequívoco, uma vez que já não podemos contar com a presença física, sendo obrigados a usufruir com muito maior intensidade o que o escritor nos deixou. E o certo é que este quarto volume nos reserva momentos únicos, que correspondem ao facto de João ter-nos deixado inesperadamente numa circunstância de grande maturidade na escrita e na reflexão. Ao invocar Anna Magnani em «L’Amore» de Rossellini, o autor recorda a parte do filme em que a aparição de Fellini, numa história por este inventada, houve quem quisesse ver uma blasfémia, por haver a misteriosa aparição de alguém que é identificado com S. José e por haver uma criança que nasce em circunstâncias inusitadas… Houve acusações de invocação abusiva da Anunciação, mas Rossellini recordaria, a propósito, o sermão de S. Bernardino, de autoridade indiscutível, sobre o cão Bonino condenado pela aparência de matar uma criança que realmente salvava: «o que importa é a fé dos homens. Nada mais conta. O resto é a superficialidade dos homens». E essa superficialidade também está patente, quando continua ainda a conhecer-se mal e a esquecer-se o primeiro tradutor português das Sagradas Escrituras, João Ferreira Annes de Almeida, não reconhecendo a importância de um trabalho pioneiro como aquele que então fez e que hoje contribui para aperfeiçoarmos o diálogo no seu do cristianismo no sentido de uma melhor compreensão da importância das Escrituras, como lugar de encontro e de diálogo, nesse «estaleiro de símbolos» e «imenso dicionário», para citar Paul Claudel.
A FORÇA DO ESPÍRITO E DA AMIZADE
O conjunto das crónicas apresenta-nos um inesgotável manancial de temas e de reflexões. A lembrança da amizade entre Montaigne de La Boétie é um exemplo de uma sensibilidade culta, para quem a citação de Michel de Montaigne sobre a amizade ultrapassa em muito a invocação das palavras do autor da «Apologia de Raimond Sebond». Estamos no centro da dignidade humana e da força das relações interpessoais: «o que normalmente chamamos amigos e amizades não são mais do que hábitos ou conhecimentos provocados por aquesta ou aquela ocasião ou acaso, desses ou dessas que existem para entretenimento das nossas almas. Mas, na amizade de que eu falo, tudo se confunde e mescla numa mistura tão universal que, por completo, apaga a costura que as uniu e da qual não se observa o mais leve rasto. Quando insistem comigo para saber porque é que eu o amava (Montaigne fala de La Boétie), sinto que não o consigo exprimir senão dizendo: Porque era ele; porque era eu». A fórmula, justamente popularizada, põe a tónica na relação de amizade como um desafio pessoal, de dar e de receber – e de singularidade de proximidade. A amizade obriga a essa reciprocidade, a essa confiança, a essa troca, a essa entrega que conduz à feliz síntese que Montaigne nos apresenta, em coerência com as grandes reflexões da humanidade sobre a amizade. O texto que trata deste tema vem ilustrado com um belíssimo rosto da autoria de Roger van der Weyden – e o certo é que a crónica anda à volta do misterioso desaparecimento em Bruxelas de Beata Dubrowska. «Uma rapariga de vinte e poucos anos, se tanto, talvez a mulher mais bela que estes meus olhos viram. Era louríssima, tinha a pele branquíssima e os olhos daquela azul que só o Maître de Moulins ou Rober Campin conseguiram pintar. Uma virgem flamenga como nem mesmo esses a representaram». A crónica relata um encontro, que nada teve de alucinatório porque partilhado por outras pessoas, e um misterioso e incompreensível desaparecimento – «talvez Beata (polaca de nacionalidade) não tenha descido dos céus à terra, na sua mor beleza». Este fugaz encontro e sequente desencontro tem conhecidas referências antigas – Cícero dizia: «o amor é o desejo de alcançar a amizade de quem nos moveu pela beleza»… O espírito obriga a que as relações humanas se componham dessa gratuidade e desse fascínio… O que nos leva ao Espírito, como na belíssima crónica «Noli Me Tangere». Trata-se de um episódio perturbador, relatado por S. João sobre Maria de Magdala: «Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Julgando que Ele era o Jardineiro, ela respondeu: “Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei Busca-Lo”. Jesus disse: “Maria.” Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: “Rabuni!”, o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: “Noli me tangere (não me toques) porque ainda não subi para junto do Pai. Mas vai ter com os Irmãos e diz-lhes que eu subo para o Meu Pai e Vosso Pai, para o Meu Deus e Vosso Deus”». (Jo. VIII.20: 11-17). João Bénard da Costa, com especial agudeza de análise, lembrando que a vibração familiar do Natal foi sempre mais intensa do que na Páscoa, apesar desta representar o momento fundamental do mistério de Cristo, procura dar a chave desta disparidade, a propósito do quadro de Tiziano que representa este episódio: «Se é lícito especular sobre essa representação, o que Tiziano figurou foi um cadáver que ainda não tinha ressuscitado no esplendor da ressurreição da carne e que, por isso, não quis ser tocado na carne ainda submetida ao aguilhão da morte». Este quarto volume reúne crónicas que, para quem as leu em primeira mão, ficaram desde logo marcadas como arrebatadoras. Lembremo-nos de «Morreu-me Teresa Stich-Randall»; «Introito Ad Altare Dei»; «Setembros de Antigamente»; «Arrábida Novamente», «Um dia Claro» e «Em Esperança Salvos Somos». A cada passo encontramos o testemunho de alguém que amava as pessoas e as coisas que tocavam. Ruy Belo diria: «uma casa é a coisa mais séria da vida». Stich-Randall foi a mulher que João mais amou no mundo – «ouvi-a mil vezes e dos anjos quase sempre só a voz foi ouvida». E quanto à liturgia não terá ela introduzido uma certa banalização do sagrado? A invocação dos tempos de férias, torna, por seu lado, a nostalgia algo de reconstituinte da convivialidade. «Agosto e Setembro, na Arrábida (…) eram o que nesta terra mais se aproxima do céu»… «Quem conhece a Arrábida sabe que mais nenhuma se lhe pode assemelhar. Se nela tantas vezes me perdi, sempre foi nela que me achei. Outrora como antes, ou outrora no depois». Carl Th. Dreyer e «Ordet» («A Palavra») é especialmente lembrado pela força sobrenatural de uma obra-prima da arte europeia – «Graças a todos, vivi um dia claro. Agora, mais do que nunca, sei o que isso quer dizer»… Por fim, nesta enumeração aleatória, vem a referência a Bento XVI e à sua encíclica Spe Salvi, que permitiu uma sessão memorável no CNC – «a Esperança permanece a virtude mais misteriosa, aquela que pasma o próprio Deus, com escreveu Charles Péguy»…
Guilherme d’Oliveira Martins
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