RELAÇÕES ANCESTRAIS
Falar das relações entre Portugal e a Etiópia é reportarmo-nos a um conjunto notável de ligações e testemunhos (materiais e imateriais) que nos permitem compreender o modo como se desenvolveram os primeiros encontros entre civilizações diferentes nos tempos modernos. «A Etiópia, esquecida do mundo e esquecendo o mundo durante mil anos – na frase de um grande historiador inglês – a Etiópia foi depois descoberta ou redescoberta pelos portugueses, e durante um século ou mais ocupou as atenções dos soberanos e dos povos do Ocidente. Mas, passado aquele período, caiu de novo no antigo isolamento e esquecimento, donde apenas surgiu nos tempos modernos…». Assim se exprimia o Conde de Ficalho, em 1898, no seu utilíssimo livro «As Viagens de Pêro da Covilhã»… E, ao referir a Etiópia, somos levados, antes do mais, ao mito do Preste João das Índias, com raízes muito antigas, que correspondem à ideia de que no Oriente, vasto e desconhecido, haveria um reino cristão, que poderia ser aliado ou contraponto relativamente à influência do Islão no Mediterrâneo e no Oriente. De meados do século XI ao século XII, esta hipótese vai desenvolver-se, o Bispo sírio Hugo de Jabala dá conta da existência de um reino cristão «para lá da Pérsia e da Arménia», onde haveria um rei-sacerdote – o Presbítero João – talvez descendente de Baltazar, o Santo Rei Mago da Epifania cristã. Estava-se na preparação da Segunda Cruzada, depois da queda de Edessa, na zona da Síria e de Antioquia. Em 1165 circularam na Europa diversas versões de uma hipotética carta do Preste João, ao Papa Alexandre III, ao Sacro-Imperador Frederico e a D. Manuel Comneno de Bizâncio. Tratar-se-ia de um Reino maravilhoso aquele em que o Preste João reinaria, vivendo num palácio de ébano e de cristal, decorado com pedras preciosas e colunas de ouro, albergando todas as espécies de animais que havia sob o Sol. Esse rei sacerdote exerceria o seu poder num território incerto, a oriente do rio Nilo. Há várias referências, designadamente dos franciscanos Piano Carpino e Ruybroek, merecendo destaque, em finais do século XIII, o testemunho do célebre livro de Marco Polo, no qual o Preste João é identificado como sendo Uang-Khan, chefe de uma tribo mongol, junto do rio Amarelo. No século XIV, os frades menores Odorico de Pordenone e Giovanni Monte Corvino, chegados a Pequim, falam de um rei-branco, porventura cristão-nestoriano, que seria aliado dos mongóis.
UM REINO MISTERIOSO…
Sobre o Preste João, há, pois, elementos contraditórios e incertos, uma vez que temos notícia de grupos nestorianos na Ásia Central e na Índia, além de haver no Malabar a antiga comunidade de S. Tomé e na Etiópia o reino cristão-copta de Axum. A Etiópia tornou-se, porém, por aproximações sucessivas, com o tempo, o território mais provável para ser o do misterioso Império do Preste João – sendo esse Imperador mítico representado na segunda metade do século XIV nas cartas geográficas sentado num trono com um globo e uma cruz, símbolos do poder entre os cristãos. Gomes Eanes de Zurara refere, aliás, entre os objetivos do Infante, a procura de um aliado cristão. Nesta linha, D. João II projetou em 1487 as viagens conjugadas de Bartolomeu Dias, por mar, e dos emissários por terra, Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã – para descobrir e saber do Preste João e onde achar canela e outras especiarias. D. João teria mesmo recebido um monge abexim, Lucas Marcos, vindo de Roma, a quem teria entregado cartas para o Imperador Presbítero. Este celebrado «plano da Índia» teria tido como antecedentes o interesse manifestado por D. Pedro e D. Henrique. Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã avançam para o Cairo, atravessam o Mar Roxo e chegam a Adem. Paiva vai para a Etiópia e o companheiro viaja até ao subcontinente indiano. No regresso ao Cairo, Pêro da Covilhã sabe da morte de Paiva e segue para a Etiópia, onde se fixa e constitui família. Quando a embaixada portuguesa de Rodrigo Lima chega à Etiópia encontra-o já fixado e com descendência, mas o Império, longe da riqueza esperada, luta com dificuldades e defende-se com sacrifício do expansionismo dos povos vizinhos. Os portugueses irão, aliás, ajudar os etíopes nas dificuldades com que se debatem.
NOVAS CIRCUNSTÂNCIAS
A abertura da rota do Cabo, a estabilização das relações com a Índia levaram a que as relações entre a Etiópia e Portugal se tenham reforçado. O Rei D. Manuel passa a intitular-se «Senhor da Conquista e da Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia» – o que demonstra uma vontade de domínio assumida pelo monarca português. De facto, há interesse em estabelecer ligações oficiais com a Etiópia com múltiplas finalidades, desde a comercial à religiosa. Afonso de Albuquerque apoia a ida a Lisboa de um representante etíope da Rainha Eleni, o mercador de origem arménia, Mateus, rodeado de muitas desconfianças e dúvidas, por haver quem julgasse que era um espião. Na sequência desta missão, o cronista Duarte Galvão, já idoso, é nomeado embaixador à Etiópia para acompanhar Mateus e também Lopo Soares de Albergaria, este designado para substituir Afonso de Albuquerque no governo do Estado da Índia. A embaixada é, no entanto, comprometida pelas graves contradições internas. Duarte Galvão falha, assim, o desembarque para chegar à Etiópia e morre pouco depois. Em 1520, D. Rodrigo de Lima é designado, já pelo substituto de Lopo Soares de Albergaria, Duarte Lopes de Sequeira, para representar o Rei de Portugal. Na comitiva que se atardará durante cerca de sete anos na Etiópia, encontramos, de novo, de início, Mateus, que morre pouco depois do início da missão, bem como do clérigo secular Padre Francisco Álvares, cujo testemunho será crucial quer relativamente a Pêro da Covilhã quer no tocante à vivência na sociedade abexim. A «Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias» do Padre Álvares é um documento precioso – quer para se perceber a sociedade etíope, quer para conhecer o pensamento de um europeu do seu tempo sobre uma sociedade desconhecida. Notam-se as diversas tentativas para a mudança do rito etíope, para contrariar a dependência de Alexandria e para ligar a Abissínia a Roma, sem sucesso. Damião de Gois vai também interessar-se pela aproximação entre os ritos etíope e romano. O jesuíta espanhol Pero Pais, vindo de Goa, merece também referência, pelo papel que teve na influência da arquitetura portuguesa na Etiópia. Foi o primeiro europeu a chegar à nascente do Nilo Azul, além de ser dos primeiros difusores da importância do café. É, aliás, importante falarmos de um património de influência portuguesa na Etiópia. Há memórias de uma pequena comunidade católica de origem indo-portuguesa – devendo lembrar-se os vestígios edificados da presença portuguesa, com um caráter próprio e original, nas áreas militar, civil e religiosa. Refiram-se o complexo de Gondar, com influência jesuítica e nítidas semelhanças relativamente a Goa e Diu – classificado pela UNESCO, envolvendo Gorgora Nova, a norte do Lago Tana, Guzara, protótipo do estilo luso-etíope, entre Gondar e o Lago Tana – a primeira cidadela em pedra e cal, além das ruínas da catedral e do palácio de Danqaz.
Guilherme d’Oliveira Martins
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