REFLEXÃO DA SEMANA
De 28 de Março a 3 de Abril de 2005
Todos devemos alguma coisa a Júlio Verne (1828-1905). Ele foi dos nossos primeiros companheiros de aventuras. Phileas Fogg fez connosco a volta ao mundo em 80 dias, fomos com o capitão Nemo e o “Nautilus” ao fundo dos mares em fantásticas vinte mil léguas, o capitão Hatteras levou-nos aos limites dos mares e do mundo, Miguel Strogoff fez-nos conhecer os confins da Rússia, de Moscovo a Irkutsk, viajámos durante cinco semanas em balão, fomos à ilha misteriosa, aos pólos e ao centro da terra, fomos ainda da terra à lua, visitámos a via láctea com Hector Servadac, gozámos as tribulações de um chinês na China… O mais espantoso foi que um escritor de antecipação tenha mantido, como manteve, a frescura das suas narrativas já no século XX, quando começávamos a viver a concretização de muitas das suas astúcias. E a maior das surpresas veio de um inédito só conhecido no último quartel do século que passou – “Paris, Século XX”. Como poderemos esquecer o telefonoscópio? Schuiten, o fecundo desenhador belga dos nossos dias, um dos melhores herdeiros da escola da linha clara, ajuda-nos, aliás, a compreender melhor essas profecias extraordinárias. Verne antecipou a sociedade das imagens e do espectáculo, numa obra que está longe de ter esgotado toda a sua capacidade divinatória. Lembro-me, aliás, de que numa circunspecta reunião sobre prospectiva, alguém ter dito que houve apenas um visionário a prever a extraordinária sociedade da informação e comunicação, com novos instrumentos a reduzirem drasticamente as distâncias entre as pessoas e os acontecimentos. E esse visionário foi, como é óbvio, “o muito curioso” Júlio Verne, como lhe chamou Mallarmé. As Viagens Extraordinárias constituem um fascínio. Verne era capaz de prender a atenção de todos. E assim proporcionou horas inesquecíveis a várias gerações de jovens e menos jovens, momentos em que o mundo se tornava mágico. O escritor tinha um espírito maduro e aberto, capaz de usar a curiosidade científica e o espírito crítico para descobrir novas paragens, realidades, sociedades, técnicas e pessoas. Era um educador de rara sensibilidade. A ficção que utiliza não é gratuita, é um apelo permanente ao espírito de aventura, à curiosidade científica, à experimentação, ao rigor e à imaginação. Mas o sucesso da sua obra deveu-se ainda à lucidez do seu editor – Pierre-Jules Hetzel. Foi este que lançou o desafio a Júlio Verne, fazendo-lhe uma encomenda concreta, a que o mestre correspondeu de um modo inultrapassável. “A hora é chegada para que a ciência tenha lugar na literatura”. E Hetzel teve a intuição que lhe permitiu ligar Educação e Recreio (indo ao encontro da verdadeira etimologia da palavra grega escola). Tratava-se, assim, de renovar a tradição enciclopédica francesa, agora aberta a todos – crianças e famílias. E Júlio Verne ensinou-nos, afinal, o sortilégio único das viagens.