A INOCÊNCIA QUE CURA
«É a inocência que enche este vazio de tudo / É a inocência que cura». Lembrei-me de Charles Péguy (a quem voltaremos), aqui traduzido por Alberto Vaz da Silva, com a sensibilidade que lhe conhecemos, quando me deparei com a novíssima antologia da autoria de José Tolentino Mendonça e Pedro Mexia intitulada «Verbo. Deus como interrogação na Poesia Portuguesa» (Assírio e Alvim, 2014). O conjunto de textos permite-nos compreender a importância da espiritualidade na nossa cultura, como Unamuno bem entendeu, ou como Eduardo Lourenço tem revelado de um modo superior. «As antologias são documentos sociológicos sobre o país», sendo a poesia o «elemento de agregação de identidade nacional, não só do passado, mas também em relação ao presente». José Tolentino Mendonça tem razão ao afirmá-lo, sobretudo porque a leitura dos poemas escolhidos vai muito para além de uma seleta literária, há perguntas essenciais (ou uma pergunta sacramental) que permitem caracterizar a identidade complexa, que tem feito correr rios de tinta sobre quem somos e sobre o que nos distingue dos outros. A antologia percorre nomes representativos: Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Fernando Echevarría, José Bento, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão, Adília Lopes e Daniel Faria. Não se trata, porém, de textos para crentes e não crentes, nem de uma lista exaustiva de autores, mas de algo que Pedro Mexia esclarece: «o que está em causa não é a religião ou a crença, mas a pergunta». Daí a importância do percurso poético, que leva a Jorge de Sena e às suas inquietações (bem nítidas até ao fim da vida): «se Deus partiu para o limite da vida / quando olhámos ambos a realidade das coisas; / se não existe uma barca onde o rumo se invente, / embora as pontes sejam dessas barcas; / se onde estiver um homem não estará outro homem. / Não sei, de facto, porque falo de Deus».
UM AGREGADOR DE IDENTIDADE
Eduardo Lourenço, nado e criado sob o calor dos nossos maiores poetas, Camões, Garrett, Antero e Pessoa, aponta-nos uma vereda prometedora: «o fervor é pensar que apesar de perdido, o paraíso continuará a ser ainda aquilo de que nos lembramos, aquilo que permite que saiamos desta terra, onde aparecemos, sem ter o sentimento ou a convicção de que estivemos no inferno». O elemento agregador da identidade cultural que constituímos tem, assim, a ver com essa subtil articulação entre uma fé herdada e uma razão obtida e conquistada, feita vontade e bem presente na voz romântica do «profeta» Herculano. Sophia situa-se, aliás, nessa mesma encruzilhada, tornando-se, ela mesma, símbolo sereno e indefinível do nosso modo de ser: «Escuto mas não sei / Se o que ouço é silêncio / Ou deus / Escuto sem saber se estou ouvindo / o ressoar das planícies no vazio / Ou a consciência atenta / Que nos confins do universo / Me decifra e fita / Apenas sei que caminho como quem / É olhado amado e conhecido / E por isso em cada gesto ponho / Solenidade e risco». E aqui chegamos a Charles Péguy, que João Bénard da Costa gostava de lembrar: «A fé é que vela nos séculos dos séculos. A caridade é que vela nos séculos dos séculos. Mas a minha pequena esperança é a que se deita todas as noites e se levanta todas as manhãs e faz verdadeiramente muito boas noites». Muitos têm falado do estranho silêncio que tem rodeado em Portugal o ano do centenário do poeta de «Notre Jeunesse», mas o certo é que seria fundamental associar este trabalho de recolha com o ano propício em que celebramos o centenário da morte de um poeta importante, desaparecido no início de uma guerra que se adivinhava breve e que se tornou longa, trágica, sangrenta e absurda – cristão, poeta, militante social, republicano, que acreditava intimamente em «dire la verité, toute la verité, rien que la verité, dire bêtement la verité bête, enuyeusement la verité enuyeuse, tristement la verité triste».
INTERROGAÇÃO ESSENCIAL
Se a antologia em causa permite perscrutar a interrogação essencial, o recente ensaio de José Carlos Seabra Pereira, no último número da revista «Brotéria» (volume 178, nºs 5-6, maio e junho de 2014), intitulado «Inquietação transmanente na Poesia do Século XXI» é um estimulante itinerário, que permite abrir horizontes bem curiosos. Aí estão os ecos de Nemésio, Sena, Carlos de Oliveira ou de Ruy Belo, até Luís Quintais, passando por Luísa Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, além de Adília Lopes e Daniel Faria, naturalmente. E não passa despercebido o eco das palavras de Adília: «A cada cidade / basta a sua pena // e / o amanhã / é / como o arco-iris»; mas também de Valter Hugo Mãe: «as flores mais belas da ladeira / seriam capazes de criar/ deus». O texto de Seabra Pereira permite-nos, aliás, dizer que a pergunta fundamental da antologia está um pouco por toda a parte – desde Gonçalo M. Tavares a invetivar-nos: «Nenhuma célula é Fértil a não ser a Alma», até Adília Lopes a dizer-nos: «Deixa / o dia de ontem / com Deus // … // Um anjo está contigo / quando desanimas». Os exemplos multiplicam-se, quer na antologia quer no texto académico – sente-se que a matéria-prima da poesia, como nos ensaios sobre quem somos, tem a ver com as perguntas difíceis que vão do sentimento trágico da vida, à intensidade da existência, à força das circunstâncias, à graça e à gravidade, passando pelo rosto do outro (de Levinas), pelo sonho criador (referido à essência da pessoa humana por Maria Zambrano) e pela consciência (de Rosenzweig) de que mais importante do que a utopia é a redenção, como «experiência da espera por uma mudança que pode desencadear-se a qualquer momento como uma repentina iluminação».
«E o que vai ser de ti? Serás talvez / não o que deus não foi para ti: rins / cingidos mas um nome para a tua timidez». Ruy Belo obriga-nos persistentemente à pergunta e à dúvida. E voltamos à inocência de Charles Péguy (ou, quem sabe?, à inocência de Orhan Pamuk). Pedro Sena-Lino lembra-nos, deste modo, que «onde hoje se levanta uma árvore morou uma angústia» e é «tão nítida que se pode separar / a respiração de Deus dos seus escombros». E Ana Luísa Amaral (que encontrei há dias perante o extraordinário grupo do «Disquiet», herança cada vez mais intensa de Alberto Lacerda) põe sobre a mesa «O pensamento mais iluminado. / Saber de energia, o mais puro conceito. / Como Deus // Podem ainda assim / acontecer…». Mas Fernando Pinto do Amaral previne-nos contra «essa herança do céu que há no inferno, / tudo isso a que chamamos melancolia», e Daniel Jonas põe os olhos na «luz refrata de Deus», longe das catedrais no azul de Chartres. E Ana Marques Gastão pergunta: «Diz-me, ó Deus, / Se só há mortos / em minha língua». Daniel Faria: «Rebento no interior da morte como o trigo». Enquanto para José Tolentino Mendonça: «Deus não aparece no poema / apenas escutamos a sua voz de cinza / e assistimos sem compreender / a escuras perícias». A poesia permite assim olharmo-nos.
«E o que vai ser de ti? Serás talvez / não o que deus não foi para ti: rins / cingidos mas um nome para a tua timidez». Ruy Belo obriga-nos persistentemente à pergunta e à dúvida. E voltamos à inocência de Charles Péguy (ou, quem sabe?, à inocência de Orhan Pamuk). Pedro Sena-Lino lembra-nos, deste modo, que «onde hoje se levanta uma árvore morou uma angústia» e é «tão nítida que se pode separar / a respiração de Deus dos seus escombros». E Ana Luísa Amaral (que encontrei há dias perante o extraordinário grupo do «Disquiet», herança cada vez mais intensa de Alberto Lacerda) põe sobre a mesa «O pensamento mais iluminado. / Saber de energia, o mais puro conceito. / Como Deus // Podem ainda assim / acontecer…». Mas Fernando Pinto do Amaral previne-nos contra «essa herança do céu que há no inferno, / tudo isso a que chamamos melancolia», e Daniel Jonas põe os olhos na «luz refrata de Deus», longe das catedrais no azul de Chartres. E Ana Marques Gastão pergunta: «Diz-me, ó Deus, / Se só há mortos / em minha língua». Daniel Faria: «Rebento no interior da morte como o trigo». Enquanto para José Tolentino Mendonça: «Deus não aparece no poema / apenas escutamos a sua voz de cinza / e assistimos sem compreender / a escuras perícias». A poesia permite assim olharmo-nos.
Guilherme d’Oliveira Martins