A Vida dos Livros

De 27 de junho a 3 de julho de 2016

«Homens Livres» foi uma revista publicada em 1923, apenas com dois números, que uniu personalidades de horizontes políticos diferentes dispondo-se hoje de uma edição de 1978 da autoria de João Medina, com o título «O Pelicano e a Seara» (Edições António Ramos).

UMA EXPERIÊNCIA SINGULAR

Quando falamos de cultura portuguesa, invoca-se sobretudo o conteúdo literário e artístico, mas cada vez mais é necessário lembrar também a cultura científica, como fazia questão sempre de lembrar José Mariano Gago, que compreendeu melhor que ninguém essa importância. Urge não esquecer, afinal, Pedro Nunes, Garcia de Orta ou D. João de Castro – e tudo o que representam numa cultura aberta e relevante. O tema leva-nos a recordar dois textos de 1923 sobre o tema. Numa experiência fugaz, animada por António Sérgio e Afonso Lopes Vieira, a que se associaram diversos elementos dos grupos da «Seara Nova» e do Integralismo Lusitano, foram publicados dois números da revista «Homens Livres», que tinha como objetivo fundamental favorecer o diálogo intelectual de pessoas muito diferentes, que Sérgio considerava poderem criar um «modus vivendi» pluralista e civilizado – forma de prevenir as tentações totalitárias que se perfilavam no horizonte. «Homens Livres» tinha como subtítulo «Livres da Finança & dos Partidos» e referia uma epígrafe de Camões – «Livres e seguros»… Do que se tratava, na palavra do autor dos «Ensaios», era de «utilizar o que está morto para a vitalidade do que está vivo, – eis o papel da Inteligência; marcar ao que está vivo o ideal da sua vida, – eis o da Razão». A experiência parecia surpreendente e paradoxal, talvez prematura, mas o certo é que hoje se compreende como alguns intelectuais se apercebiam da necessidade de fazer funcionar uma sociedade política com a colaboração de influências diferentes, que pudessem evitar as soluções de força de carácter excecional, que viriam a ocorrer nos anos trinta e a culminar na Guerra. Se nos lembrarmos do percurso de António Sérgio, facilmente percebemos que em vários momentos da sua vida (até à candidatura de Humberto Delgado, em 1958) procurou que a racionalidade democrática se impusesse, como nos países mais avançados. À distância, sabemos que seria sempre difícil contrariar uma tendência dramática de fragmentação e de incapacidade para regenerar as instituições republicanas. No entanto, percebemos haver uma tentativa séria, mas impraticável, para mudar o curso dos acontecimentos.


«HOMENS LIVRES»

António Sérgio, António Sardinha, Raul Proença, Jaime Cortesão, Simões Raposo, Aquilino Ribeiro, Afonso Lopes Vieira, Augusto da Costa, Reynaldo dos Santos, Bettencourt Rodrigues, Celestino da Costa, Ezequiel de Campos, Quirino de Jesus e Castelo Branco Chaves são os autores dos textos publicados, dispondo-se hoje de uma edição de 1978 da autoria de João Medina, «O Pelicano e a Seara» (Edições António Ramos), com a totalidade do conteúdo das revistas. O facto de nos referirmos a essa experiência deve-se, porém, a dois curiosos textos que merecem a nossa atenção por tratarem da necessidade da cultura portuguesa dar mais atenção à investigação científica e ao reconhecimento do mérito dos estudiosos. Muitos anos passaram, o mundo mudou radicalmente, a cultura científica em Portugal conheceu uma evolução de grande relevância, mas o tema merece ser recordado, a partir dos contributos de Reynaldo dos Santos e de Celestino da Costa. Afinal, esses textos, aparentemente marginais, na iniciativa dos «Homens Livres» têm a ver com o essencial da atitude de António Sérgio, na sua preocupação de sempre no sentido de favorecer a «fixação» de inteligências e de recursos e de colocar Portugal ao ritmo da civilização – numa linha de fidelidade ao pensamento e ao magistério de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, bem como à plêiade que acompanhou Antero de Quental nas Conferências do Casino. Lembremo-nos de que da fugaz passagem de Sérgio pelo Ministério da Instrução Pública (dois meses) resultou a criação do Instituto Português de Oncologia e o projeto da Junta Propulsora de Estudos, visando a criação de bolsas no estrangeiro para os nossos investigadores…


A IMPORTÂNCIA DA CIÊNCIA

Reynaldo dos Santos, médico e historiador de Arte, intitula o seu pequeno texto «Portugal Hostil aos Portugueses de mérito» e refere, na tradição secular do Hospital de Todos-os-Santos, o «impulso inteligente e orientador de Manuel Constâncio, no reinado de D. Maria I», que permitiu a criação da única «Escola seguida que houve em Portugal com tradição, com prestígio e com discípulos». Trata-se, porém, de um caso excecional. Ao longo da História, o clínico queixava-se do facto de figuras fundamentais como Garcia de Orta, Rodrigo de Castro e Amato Lusitano terem tido pouca influência entre nós. Garcia de Orta viveu na Índia e contou com um estrangeiro, Charles de l’Ecluse, para divulgar o seu contributo científico. Amato foi obrigado a sair de Portugal, exercendo clinica em Antuérpia e sendo reconhecido em Ferrara, Ancona, Roma, Florença, Salamanca e Salónica – só sendo tardiamente conhecido em Portugal. Rodrigo de Castro, também judeu, estudou em Salamanca e Siguenza, criou a Ginecologia na Europa e ainda hoje é pouco lembrado. Ainda Zacuto Lusitano foi conhecido mais depressa na Holanda e no resto da Europa do que entre nós – «tendo lá escrito e lá se tendo celebrizado, longe da “dulcíssima pátria”, como ele chamava à que o não soubera guardar». Por fim, nas referências de Reynaldo, está Ribeiro Sanches, conselheiro da Catarina da Rússia, com um prestígio de que só tardiamente nos vangloriámos – formado em Coimbra, influente na reforma de Pombal, só muito tardiamente foi recordado entre nós, quando em toda a Europa era elogiado. «Nenhum deles é filho duma escola, duma educação ou duma tradição portuguesa; alguns seguem a da sua raça estudiosa e culta, que dera grandes cosmógrafos e médicos; mas todos se perdem no cosmopolitismo a que a pátria os forçou de vez, com a sua habitual ignorância dos valores, sem voltarem para criar entre nós essa influência fecundante que perpetuaria o seu génio através duma Escola ou duma geração». São essas ideias de escola, de continuidade, de abertura e de cooperação internacional que Reynaldo dos Santos enaltece. E Celestino da Costa, na mesma linha de preocupações, invoca o que Ramon y Cajal chama de «enquistamento espiritual da Península» e António Sérgio designa como «isolamento», referindo a expulsão dos judeus, que «privou a pátria de uma elite de grandes aptidões científicas» bem como as perseguições a «humanistas ilustres», acrescentando: «não nos faltam as aptidões científicas: faltam-nos as instituições que permitam o seu desenvolvimento, indispensáveis para que o culto da ciência não seja em Portugal, obra do acaso, sem continuidade nem influência (…). Toda a nossa economia, a agricultura, a indústria, a viação, a higiene pública, o comércio precisam de direção científica, de homens de ciência autênticos que criem e inventem, e não dos que, denominando-se assim, não passam de diplomados mais ou menos brilhantes, mas infecundos». Daí a necessidade de uma elite científica capaz de orientar a economia, o que pressupõe um ensino de qualidade e a capacidade de ver longe e largo.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

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