A Vida dos Livros

De 26 de fevereiro a 4 de março de 2018.

O livro de Marco Polo é uma referência essencial nos relatos de viagens, sobretudo pela influência que exerceu na abertura de horizontes nas descobertas oceânicas dos séculos XV e XVI, em especial iniciadas pelos portugueses. 

MARCO POLO E PORTUGAL

Em Portugal é conhecido o facto de um exemplar manuscrito constar da livraria de D. Duarte, devendo pensar-se que esse exemplar esteja relacionado com o que foi trazido pelo Infante D. Pedro de Veneza na década de 1420, depois das importantes deambulações europeias. Temos notícia da tradução impressa em 1502 (vd. imagem), escrita antes, feita por Valentim Fernandes com objetivos informativos, para os portugueses que se dirigiam ao Oriente, e políticos, para enaltecer o rei D. Manuel, tendo um texto introdutório que descrevia os territórios correspondentes à Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. Sobre a Pérsia são parcas as palavras de Valentim Fernandes, que remete para o relato do próprio Marco Polo, onde se faz referência às regiões desde Tabriz (noroeste do Irão) até Caxemira. É essencialmente o mercador que está em causa, referindo as rotas comerciais, dando natural ênfase a Ormuz e aos produtos trocados em cada região, bem como aludindo ao clima, às riquezas naturais e às condições de segurança. Aí se fala da devastação operada pelos chamados incorretamente de tártaros, já que se trata de mongóis; da cidade de Saba, terra mítica dos magos que foram a Belém, adorar Cristo; da fauna, avultando as referências aos falcões e aos asnos; da flora exótica e desconhecida dos europeus; das práticas bárbaras dos habitantes da zona; da influência exercida pelos indianos nas práticas de magia; da beleza das mulheres de Timochain no norte da Pérsia e dos vestígios da presença de Alexandre Magno. A Pérsia interessa aos europeus como território da rota da seda e como repositório histórico de interesse superlativo. No caso português, a Pérsia fará mesmo parte dos títulos do rei D. Manuel, onde expressamente se refere a «conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia». Ormuz, por onde Marco Polo passou duas vezes, constituirá o ponto estratégico crucial da presença portuguesa no Golfo Pérsico – definida e iniciada por Afonso de Albuquerque. O primeiro português em terras do Golfo e na ilha de Ormuz, em 1489, foi porventura Pêro da Covilhã, enviado por D. João II em busca do reino do Preste João. O rabi Abraão de Beja e o sapateiro José de Lamego, que andaram na região, também terão estado em Ormuz, mas as informações destas explorações terrestres apenas chegaram a Portugal depois de terem sido contadas por Pêro da Covilhã ao Padre Francisco Álvares em 1520, quando foram estabelecidas relações com o Imperador da Abissínia…

O ESPÍRITO DAS CRUZADAS

Devemos lembrar os planos de D. Manuel para a conquista do Médio Oriente, desde o reino mameluco à ambição da tomada de Jerusalém, segundo os velhos ideais das cruzadas. Afonso de Albuquerque participava de tais ideias messiânicas – facto que não pode ser esquecido quando analisamos a sua ação. Como sabemos, em outubro de 1507 houve uma primeira conquista da praça de Ormuz por Albuquerque, já que o domínio da entrada do golfo Pérsico constituía uma condição essencial para o comércio do mar Arábico, sobretudo perante o insucesso na tomada de Adém. Assim se poderia enfraquecer a influência otomana no levante do Mediterrâneo, apesar de o império turco conhecer um período de expansão e consolidação no território persa. Ormuz era um importante centro de comércio, onde se trocavam alimentos, drogas, incenso, especiarias, marfim, metais e minerais, cavalos (persas e árabes), tecidos e joias, perfumes e produtos de luxo. Não foram fáceis, porém, os primeiros tempos para os portugueses, já que Albuquerque foi levado a abandonar a presença em Ormuz (1508), na sequência de um motim de capitães – tendo, mesmo assim, praticamente concluída a construção da fortaleza. A expansão otomana e a ameaça desse movimento avassalador levaram a uma aproximação da Pérsia a Portugal. Deste modo, o próprio Afonso de Albuquerque, pouco depois da conquista de Goa (1510), recebeu um enviado do xá Ismail – que apontou no sentido de haver possibilidades de uma aliança. De facto, havia objetivos convergentes no antagonismo relativamente ao Sultão do Cairo e à expansão turca… Contudo, foram tímidos os progressos no sentido de um entendimento formal, que perdeu premência com os sucessos das conquistas otomanas, com o enfraquecimento do poder do xá, com a incorporação do sultanato mameluco no império turco e com a morte de Afonso de Albuquerque (1515). Como se nota nas “Décadas da Ásia” de Diogo do Couto, o tom adotado é o de um relacionamento pacífico entre o Estado Safávida e o Estado Português da Índia…

FINALMENTE EM ORMUZ…

Em Abril de 1515, Albuquerque, “o cavaleiro grande e forte leão dos mares”, então governador da Índia, concretizaria a conquista de Ormuz, para mais de um século, e então pôde ter lugar o completamento e a consolidação do Forte de Nossa Senhora da Conceição de Ormuz. Sobre a importância da Praça, Diogo do Couto citará o vice-rei D, Afonso de Noronha, em 1552: “as outras fortalezas podem-se chamar membros particulares da Índia, mas Ormuz é corpo de que todos os membros rebem substância e se sustêm (…) nem a Índia se pudera sustentar sem a contratação de Ormuz”. Um fidalgo velho acrescentou que “Ormuz era a chave de toda a Índia, e cabeça daquele comércio da Pérsia e da Arábia, título de que os reis de Portugal tanto se jactavam”. Tomé Pires, logo em 1513, ao passar por Ormuz a caminho da China, descrevera, aliás, o reino como “rico e nobre” e “chave para a Pérsia” – “o povo é civilizado e humilde; tem espírito guerreiro, boas armas e cavalos”. Gaspar da Cruz em apêndice ao seu “Tratado das Cousas da China” escreveu sobre a cidade de Ormuz, onde viveu três anos (1560-63), que a urbe “tem todas as riquezas e abastança de todas as cousas que de fora lhe trazem” – sendo os rendimentos da alfândega muito vultosos. Couto não é, porém, pródigo na análise das vantagens económicas, limitando-se a referir a utilidade de Ormuz enquanto escala, onde as armadas deviam “invernar”. Se os navios de maior porte se recolhiam na baía de Mascate, os mais ligeiros ficavam em Ormuz, retornando a Goa em setembro/outubro… E, sendo o reino de Ormuz como que um protetorado português, reconhecendo-se o monarca como vassalo do rei de Portugal, a quem pagava um tributo anual (as páreas), o cronista trata as questões desse território como do Estado da Índia, até por haver uma fortaleza com capitão e contingente militar. Duraria até 1622 a presença em Ormuz, quando as forças persas e britânicas tomaram a cidade. Hoje, podemos com a distância do tempo analisar as relações de Portugal e da Pérsia, a partir dos acontecimentos, considerando as condicionantes geoestratégicas, a expansão do império otomano, os altos e baixos na situação muito vulnerável como é a do golfo. As narrativas, como a moderna historiografia o reclama, deverão ser equilibradas e não celebratórias nem anacrónicas na definição dos termos de referência. O importante é registar o conhecimento mútuo e compreender o futuro como capaz de entender a diversidade das circunstâncias e a complexidade dos factos. A diversidade das culturas, dos valores e interesses conduz-nos à necessidade de uma ponderação serena e objetiva dos factos e à procura de pontos de encontro.    

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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