O ESPÍRITO DO TEMPO…
António José Saraiva sofreu influências do espírito do tempo, mas teve a grande argúcia de compreender a complexidade na evolução da sociedade e da cultura. O intelectual foi evoluindo, sendo um caso especial na procura de novas respostas aos problemas essenciais que foi encontrando. Foi sempre inconformista – mesmo nos momentos mais marcados. Não é possível, assim, compreender a cultura portuguesa, numa visão panorâmica, sem ler e estudar a sua obra, rica e polifacetada. Como afirmou em 1946, “desde o século XVI sucede-se uma série de tentativas para enraizar entre nós uma cultura que se malogram umas atrás de outras. A história da cultura em Portugal não apresenta um desenvolvimento seguido e consequente, mas estratifica-se em secções independentes: é uma série de irrupções descontínuas, não tem uma linha diretriz interna” (Para a História da Cultura em Portugal, volume I). Esta tendência não significa que não haja bons exemplos, no entanto há ausência de regularidade, o que leva amiúde à repetição e ao decaimento, que obrigam, tantas vezes, a recomeçar quase tudo de novo, com perda de energias. Faltou elite universitária. Houve um baixo nível da massa e as condições técnico-económicas desta foram frágeis… Deste modo, no caso português, os géneros literários ressentiram-se dessas circunstâncias – no longo prazo, o teatro, o romance não têm a pujança permanente que o lirismo individual apresenta. Há atrofia dos géneros que dependem de um público largo, que falta, e existe hipertrofia dos géneros compreende-se a seguir a Bernardim, ao Cancioneiro Geral e ao lirismo trovadoresco. Fernão Lopes é um génio singularíssimo. Gil Vicente representa a tensão entre o espírito tradicionalista e as transformações externas que se impunham. E importa ainda lembrar que há uma cultura dos letrados e das cortes portuguesas nesse tempo profundamente hispânica e peninsular… A literatura dos Descobrimentos e dos séculos seguintes será outra coisa. Se AJS dedicou uma parte importante do seu labor científico à literatura, a verdade é que procurou sempre ir mais além. “A literatura é a primeira tentativa de definição de problemas que a ciência determina com mais exatidão”. E essa preocupação levará o nosso autor a evoluir nas suas ideias de uma aproximação nítida ao materialismo histórico até uma perspetiva centrada num pensamento crítico liberal-social.
INTERROGAR SEMPRE A CULTURA.
Nos últimos anos de vida, o mestre vai estar empenhado numa revisão do que escrevera. Para definir as épocas da cultura portuguesa sugeria quatro critérios: a perspetiva mítica; a relação entre topo e base, considerando os aspetos económicos e políticos; a pertença ao sistema cultural europeu-ocidental (depois da citada prevalência do peninsular); e o valor de cada época no signo linguístico e no discurso. Nesta lógica, é muito interessante a leitura dos diversos textos publicados em 1980, sob o título Filhos de Saturno – Escritos sobre o tempo que passa. São, de facto, fruto do tempo estas reflexões que correspondem ao tratamento dos temas e problemas que preocupavam o intelectual. Os textos de 1974 (desde “Cravo de Maio flor da liberdade”) e 1975 são muito marcados pela esperança e pela crítica (de quem tinha autoridade para a fazer) sobre os caminhos e os perigos da democracia nascente. E a cada passo, lemos, uma simbiose entre o espírito sistemático, a necessidade de cultivar a liberdade crítica e o apelo ao despertar das consciências para uma cidadania ativa. O artigo do “Diário de Notícias” intitulado “O 25 de Abril e a História” (de janeiro de 1979) sobre a descolonização suscitaria polémica acesa e foi ponto de partida para um debate apaixonado no Centro Nacional de Cultura, que serviu de base a um dossiê fundamental da revista “Raiz e Utopia” – aliás fundada por AJS e prosseguida por Helena Vaz da Silva. Hoje, ressalvadas as distâncias, mas conhecendo os dramas da história das últimas décadas, compreendemos a posição assumida – e temos de saudar a coragem e a hombridade de quem considerava, na linha dos homens de A Tertúlia Ocidental, que só com ideias e com a audácia de as exprimir poderemos avançar.
IRONIA PERFURANTE.
Interrogador da identidade portuguesa, considerava que nos habita um espírito de ilhéu, “oscilando entre a aventura fora e a passividade dentro, ou ainda, vivendo a aventura pela imaginação, sem sair do mesmo lugar”. O português inferiorizar-se-ia, “refugiando-se numa autoironia perfurante, como a de Eça de Queirós, ou numa autocrítica flageladora da sua própria história, como em Oliveira Martins; ora incha o peito para desafiar o mundo ou para o conduzir…”. Trata-se da ciclotimia de Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade – bem enfatizada por Ernesto Rodrigues na introdução a Filhos de Saturno. É o humor de Rafael Bordalo Pinheiro com Zé Povinho entre a chacota e a autoironia, que leva ao sarcástico “Panegírico do oportunista”, sobre os perigos do conformista e do competente talentoso que singram pela adaptação às circunstâncias. Mas há ainda a “dificuldade de ser” do português, a misteriosa coita (“gosto de ser triste”), talvez agravada pela subalternidade da Corte na Aldeia nos sessenta anos filipinos, e presente na dualidade entre “desafio triunfante e dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo” (E. Lourenço), já visível na crítica de Gil Vicente. Leia-se o ensaio perscrutante sobre o sebastianismo (“Loucura e História”) e compreenda-se como AJS admirou a Geração de 1870 como exemplo de uma crítica consequente baseada nas ideias, não derrotista ou niilista, não caída na tentação do fatalismo. Pensa, assim, como Sophia, “que a nossa crise é antes de mais uma crise moral. É essa que está na raiz de todas”. E em carta a Óscar Lopes é claríssimo: “A verdadeira revolução terá que ser espiritual. O homem é agora feito por e para o mercado (…); o que é preciso é que o mercado seja feito para o homem”. E dirá ainda: “a ‘idade da abundância’ é, na realidade, a mercantilização total da vida, a destruição de todos os valores que não se transformem em moeda”. Quando conheci pessoalmente AJS estava embrenhado em A Tertúlia Ocidental (Gradiva, 1990). Tendo estudado Antero, Oliveira Martins e Eça de Queirós, procurou neles uma síntese desafiante para hoje. E admirando Oliveira Martins, dizia: “considerava os seus livros como preparatórios eficazes de uma ação política em que apostou a sua vida. Ele não distinguia os dois planos: o da narração e o da ação, o dos símbolos e o da prática. Procedia como se o passado não fosse um cortejo de máscaras com o seu compasso próprio mas sim como se o passado fosse o antes do presente marchando ao mesmo passo e como se o presente fosse a continuação do passado, estando a diferença entre ambos unicamente na distância a que se encontram do observador”. Eis a síntese do que procurou!
Guilherme d’Oliveira Martins
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