UMA COINCIDÊNCIA DE DATAS
Começando pelas datas, a verdade é que no curioso ponto de encontro das datas da morte – 23 de abril de 1616 – temos um pequeno equívoco, de facto sem importância. Enquanto a Inglaterra seguia o calendário juliano, a Península Ibérica adotava já em 1616 a contagem gregoriana. Eis por que razão, o dia 23 de abril, que os biógrafos referem como data possível do falecimento, de ambos não corresponde ao mesmo momento, mas sim a uma diferença de dez dias…
O certo, o certo é que, apesar dessa divergência momentânea, podemos associar as duas grandes figuras, pois representam, nas respetivas singularidade e originalidade, o início, cada um a seu modo, de uma nova literatura, que convencionamos designar de moderna… Miguel de Cervantes é, pode dizer-se, o introdutor do romance moderno – e, falando da língua portuguesa, podemos acrescentar que D. Quixote é com a «Peregrinação» de Fernão Mendes Pinto o começo de um novo capítulo extraordinário na história das narrativas… Com efeito, mais do que um relato autobiográfico, a «Peregrinação» é uma prodigiosa apresentação, picaresca e trágica, de uma vida de aventuras, que pressupõe a multiplicação das personagens e das respetivas peripécias. Os contemporâneos julgaram ser mentira essa prodigiosa proliferação de experiências, mas hoje sabemos que foi a criação literária a estar em causa, centrada na diversidade dos testemunhos que contêm um inequívoco fundo de verdade… Assim, D. Quixote e a Peregrinação são duas obras centrais na construção da moderna literatura ocidental… E lembramo-nos do surpreendente epílogo da obra-prima de Cervantes: «Senhores, mais devagar! (…) – O que lá vai, lá vai. Ontem fui louco, hoje estou são de juízo. Fui D. Quixote de la Mancha e sou agora, repito, Alonso Quixano, o Bom. Possam Vossas Mercês perante o meu arrependimento e verdade restituir-me à estima que lhes merecia e o senhor tabelião tenha a bondade de continuar…». Apesar desta tentativa de D. Quixote renegar a ponta de loucura que dominara a sua movimentação, os seus companheiros irão desejar que tudo continue na mesma, como se de um sonho se tratasse que deveria continuar… A verdade é que, se Cervantes faz a crítica, certeira e indesmentível, dos males dos romances de cavalaria – sendo o cavaleiro da triste figura a personificação de uma doentia figuração de quem se deixara arrastar por aventuras fantasiosas retiradas de uma mistura ilusória da imaginação e da vida -, o certo é que estamos perante uma outra atitude que tem a ver com a realidade que nos cerca. O quixotismo é o enfrentamento da realidade com sonho e sentido utópico – mas Sancho Pança procura reconduzir as coisas ao concreto e ao senso comum. Daí o paradoxo existente entre a recusa de continuar a loucura e o desejo dos circunstantes que tudo se mantenha…
ALMA DE UM POVO
Miguel deUnamuno disse um dia que a filosofia em Espanha se lhe apresentava na «alma» do seu povo como «a expressão de uma tragédia íntima análoga à tragédia da alma de D. Quixote, como expressão de uma luta entre o que o mundo é, tal como no-lo mostra a razão da ciência, e o que queremos que seja, segundo o que nos diz a fé da nossa religião. E nesta filosofia reside o segredo do que nos é apontado, mas que estamos longe de saber o que é». Miguel de Cervantes faz-nos o relato das desventuras de alguém que, a um tempo, nos fala de um tempo passado, assim como sonha com conquistas inverosímeis… Diversa é a atitude de William Shakespeare, ainda que haja uma evidente convergência no sentido crítico. É a alma do povo que ambos, o espanhol e o inglês, procuram…