A Vida dos Livros

de 24 de fevereiro a 2 de março 2014

Vasco Graça Moura escreveu «A Identidade Cultural Europeia» (FFMS, 2013), obra que nos permite compreender a heterogeneidade da Europa, a complexidade da sua história e a necessidade de superar a tentação de resumir as dificuldades a meia dúzia de boas intenções. É certo que precisamos da Europa, sobretudo num momento especialmente crítico, mas não haverá saídas para as dificuldades sérias que sentimos sem uma reflexão desapaixonada sobre o peso conflitual do passado e a exigência de criar condições para que a paz e a liberdade não sejam ilusões vãs.

UM DIÁLOGO PERMANENTE COM A EUROPA

Se há escritor português que mantém um diálogo permanente com a Europa, é Vasco Graça Moura (VGM). E o certo é que essa relação é versátil e crítica. Poeta, ficcionista, ensaísta e tradutor, encontramos a cada passo a proximidade e a distância relativamente ao velho continente. No ofício difícil de traduzir, assistimos a uma tensão entre a fidelidade ao texto inicial e a necessidade de o recriar fielmente para melhor ser entendido pelo leitor, como salientou Maria Alzira Seixo numa magnífica intervenção há dias na Fundação Gulbenkian, quando se discutiu a obra do autor de «Modo Mudando». Dante, Racine, Corneille, Molière, Shakespeare são companheiros na descoberta do caráter multifacetado e heterogéneo da Europa. E é esse entendimento que permite a VGM abordar, com desenvoltura e exigência, o difícil tema de «A Identidade Europeia». Cem anos depois do início da I Grande Guerra Mundial, num momento em que os melhores comentadores e analistas eram quase unânimes em afirmar que não haveria conflito ou, se houvesse, que seria rápido e tenderia a ser resolvido sem grandes delongas, sabemos o que se passou: não só houve guerra, como esta se prolongou para além do período 1914-1918, por trinta anos, já que as condições e a humilhação impostas em Versalhes à Alemanha geraram o recrudescer do conflito em 1939, com consequências trágicas, nunca antes sentidas globalmente. Se a «belle époque» pareceu anunciar um longo século de paz e entendimento, a verdade é que foi o contrário que aconteceu. VGM analisa a questão europeia depois de 1945, deixando para trás as considerações premonitórias de Keynes sobre «as consequências económicas da paz». De facto, «a identidade cultural europeia não é nem pode ser um facto imobilizado no tempo. É antes (diz o autor) um processo em marcha em que ecoam prolongamentos dessa dinâmica nascida da segunda metade da década de 1940, embora já não suscite o entusiasmo que deu lugar naquela altura». E porquê a perda desse entusiasmo? Pelo desvanecimento da memória, depois de um longuíssimo período de paz, e talvez perante a ilusão de muitos (como há cem anos) de que este tempo tenderá a estar adquirido e a não poder ser interrompido. Husserl falou, por isso, de uma Europa vencida pelo cansaço de um espírito culto e exigente. E aqui o tema é atual, não para recordar a esperança depois da inesperada afirmação da barbárie, mas para dizer que a conflitualidade europeia não pode ser superada pela ilusão e pelo cansaço, mas pela memória e pela vontade.

QUE É TRATAR DA IDENTIDADE? 
Com razão, VGM deixa claro que «as questões ligadas à identidade cultural não podem resolver-se nem regulamentar-se como as relativas à produção de manteiga ou à exploração de recursos do mar. Supõem aproximações e distâncias, possibilidades de coordenação e parentescos, similitudes de estruturação política (hoje em dia) e também uma certa visão do mundo que acaba por ser comum a partir de óticas que não coincidem necessariamente em todos os pontos. E tem de respeitar e preservar essas diferenças, prevendo antes modalidades e mecanismos de cooperação». Cabe, aliás, lembrar que Jean Monnet nunca disse, nem poderia ter dito, que se tivesse de recomeçar a construção europeia escolheria a cultura. Bastaria conhecer o seu percurso, o seu pensamento e a sua experiência (bem evidenciada nas suas «Memórias») para não cair nessa errónea consideração. Por que razão nasceu essa lenda? Apenas porque um dia, em Paris, Helene Glykatzi Ahrweiller lançou numa conferência a hipótese académica: e se a Europa tivesse começado a construir-se pela cultura? Ora, a leitura deste pequeno livro permite perceber-se bem por que razão a cultura não deve ser a base de uma integração. O «ideal de uma Europa harmoniosamente construída e convergente, quer no desenvolvimento económico sustentado, quer na qualidade de vida dos cidadãos» é de difícil realização e tem contado com todo o tipo de entraves e frustrações. Digo-o, sendo eu europeísta, mas não aceitando sonhos ilusórios. De facto, ainda não há uma democracia supranacional europeia, não temos um sistema de freios e contrapesos – e a ausência de um senado europeu com representação igualitária dos Estados tem-se revelado incapacitante. Não por acaso, Hans Jonas pergunta: «em que sentido se pode falar da Europa como uma comunidade de valores partilhados?». Perante uma história antiga de diferenças e conflitos, não há linearidade, pelo que a «identidade possível» tem de ser aberta, complexa, diversa, capaz de entender Karl Jaspers, quando afirmou nos Encontros Internacionais de Genebra que a Europa é: liberdade, história e ciência. Liberdade como vitória sobre o arbitrário, história como encontro e diálogo e ciência como apelo à verdade. E assim a Europa como ideia corresponde à resistência à uniformidade, ao centralismo burocrático e à criação de uma realidade tendencialmente unipolar. Mas, VGM vai mais longe e faz a pergunta, correta e pertinente, perante um certo relativismo cultural politicamente correto: «Conseguirá a Europa, e em especial a União Europeia, fazer-se ouvir e fazer valer o capital de tolerância e de saber que conseguiu acumular depois de tantas catástrofes dramáticas que ela própria viveu?»

HONESTO ESTUDO E ENGENHO
Camonista arguto e inteligente, o autor chama o poeta de «Os Lusíadas» na interrogação sobre a identidade europeia. «Coube a Camões afinar a utensilagem literária de que o seu canto necessitava, combinando epopeia clássica e maravilhoso medieval, processos narrativos da canção de gesta e a influência de Ariosto, trechos de crónicas, de diários de bordo e de roteiros de navegação, tradição cultural e experiência vivida, para dar a medida no novo espaço e do novo tempo…». Oiçamos é épico: «Não me falta na vida honesto estudo / Com longa experiência misturado, / Nem engenho, que aqui verei presente, / Cousas que juntas se acham raramente» (L., X, 154). A inserção europeia de Portugal liga Atlântico e Mediterrâneo, mar e continente, estudo e engenho – por isso compreendemos a complementaridade entre os infantes da «Ínclita Geração». Não deve esquecer-se, pois, que a criação cultural europeia teve um nexo próximo com o poder político e económico. A vitalidade artística e cultural europeia não pode ser compreendida sem essa ligação. E ainda Eduardo Lourenço tem-nos ensinado que o papel crítico dos mitos é fundamental para a compreensão da criação e da cultura. E, se falamos de mitos europeus, o escritor invoca Prometeu, Ulisses e Fausto – a liberdade, a aventura e o domínio do conhecimento marcam a nossa existência comum. A identidade cultural europeia existe, mas é frágil e fluida, de gestação desigual. Corresponde a um processo de autorreflexão e autoquestionamento, é um pensamento não realizado e insatisfeito, um ensinamento (como o da «Paideia») «de mandar e obedecer, tendo a justiça como fundamento». 

Guilherme d’Oliveira Martins

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