COMPREENDER A CULTURA ANGOLANA
Não podemos compreender a cultura angolana contemporânea sem lermos a obra muito rica e multifacetada de Pepetela, Prémio Camões de 1997. Pode dizer-se mesmo que, ao longo do tempo, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em 1941, em Benguela, tem procurado refletir de modo dinâmico sobre a evolução da história de Angola – olhando-a não nos seus paradoxos e dificuldades, mas na compreensão das suas potencialidades. Desde “Mayombe” (1980) até “Se o Passado Não Tivesse Asas” (2016) encontramos uma caminhada complexa e interessante, na qual a cada passo encontramos novos problemas e novos desafios. E agora, com “Sua Excelência, de Corpo Presente” talvez se feche um ciclo na análise da evolução da sociedade angolana. Para o romancista trata-se de compreender que há ciclos na vida dos povos, dos quais depende o progresso, o desenvolvimento e a emancipação. Veja-se, por exemplo, em “A Geração da Utopia” como a independência angolana gerou acontecimentos e sentimentos contraditórios que culminaram em mil dramas. Numa análise de diversos momentos-chave, passamos de um entusiasmo épico a uma progressiva instalação, que torna os interesses imediatos, a burocracia, o dinheiro e o favor mais importantes que os valores éticos. Olhando a vida de Pepetela, compreendemos que há uma evolução pessoal em que o sentido crítico e o talento se vão aperfeiçoando. Tendo passado, na sua formação em Portugal, como estudante da Casa dos Estudantes do Império, do Instituto Superior Técnico para a Faculdade de Letras – e contando com a rica experiência anterior em Benguela e no Lubango – cedo Pepetela ligou uma preocupação humanista e a consciência da emancipação social e política, que obrigava a criação de um novo Estado independente e desenvolvido. Como salienta em “As Aventuras de Ngunga”, haveria que ligar as raízes e as tradições do povo angolano ao espírito emancipador e revolucionário. A partir da necessidade de revisitação da história, Pepetela refletiu profundamente sobre a tensão entre a continuidade e a mudança. Pode dizer-se que essa é uma preocupação contínua – que articula a consciência política, o sentido crítico, a compreensão do tempo e da sua evolução e a consciência de um mundo melhor. Tendo sido Vice-Ministro da Educação do Governo de Agostinho Neto (1975-1982), foi chamado à responsabilidade de encontrar, num sector-chave, as medidas indispensáveis nos domínios didático e pedagógico, da coesão social e da dignidade humana, para preparar os jovens angolanos para uma fase decisiva da sua história coletiva. Só a aprendizagem, a experiência e o exemplo podem permitir uma emancipação eticamente fundamentada.
ENTRE METÁFORAS E DESAFIOS
Em “Yaka”, romance histórico sobre a colonização de Benguela, o romancista usou a metáfora de uma escultura de madeira, símbolo guerreiro, para articular a consciência das raízes identitárias e do novo espírito da nacionalidade. Pepetela compreende bem o tema da legitimidade numa sociedade que se pretende mais justa – as raízes fortalecem-se graças à capacidade de responder com instrumentos do presente aos desafios que se reeditam. Pensando nas origens da sua própria família, Pepetela procurou investigar a evolução histórica, designadamente em “A Gloriosa Família”, cujo tema nos leva ao século XVII. O que está em causa, porém, é compreender melhor Angola de hoje. A dimensão épica de “Mayombe” evolui para uma perspetiva crítica de “A Geração da Utopia” (1992), onde a história é confrontada com a dura tomada de consciência das divisões e contradições de uma sociedade atravessada pela exploração colonial, pela libertação, pela guerra civil e por um compasso de espera que obriga à reflexão crítica. A emergência da corrupção e da burocracia obriga a uma séria atitude de questionamento. Com Jaime Bunda, o detetive contraditório e vacilante, que é obrigado a entrar no bas-fond, o escritor visa o método satírico, que reforça o sentido agudo da crítica. Ao tratar temas muito sérios, Pepetela fá-lo reforçando os traços caricaturais da sociedade que melhor revelam os elementos dramáticos de um tempo, que em lugar de cumprir os melhores desejos esperançosos dos idealistas da libertação deixa-se arrastar pelas piores tentações do poder, que corrompe e atrai os corrompidos. Por outro lado, o realismo mágico começa a emergir na sua obra, com sentido imagético que não esquece a tradição africana e o culto da compreensão dos mitos – marcado de algum modo pela desilusão. E o tema policial associa-se à crítica do contexto internacional e às ameaças de dependência. O mundo dominado pelas superpotências, os interesses dos grandes blocos económicos, a cegueira relativamente às desigualdades e às injustiças, eis o que encontramos como pano de fundo da procura de descobrir os sintomas de uma doença política, económica e social…
QUE UTOPIA?
Oiçamos afinal, o escritor num momento chave de “A Geração da Utopia”: “Isso de utopia é verdade. Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar geração da utopia. (…) Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois, tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder, cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefação. Dela só resta um discurso vazio”. A lucidez do crítico está perante nós. E lendo com atenção, poderemos entender por que razão o sentido crítico de «Sua Excelência, de Corpo Presente» corresponde a uma exigência talvez paradoxal – a de não abandonar o sentido crítico, a de compreender as razões da sociedade imperfeita e a de prosseguir um caminho de emancipação individual mercê de um desenvolvimento comum. Para Pepetela: “Será muito cedo para lançar foguetes, mas não se poderá negar haver uma ‘brisa nova’ soprando nas nossas faces. Que as flores tenham oportunidade de desabrochar e que não percamos (nós continente, nós país) o comboio da modernidade e do progresso, que parece estar ao alcance da mão, é o meu desejo”.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença