A Vida dos Livros

de 24 a 30 de março de 2014

Luísa Braz de Oliveira dirigiu a edição «Lisbonne, Histoire, Promenades, Anthologie et Dictionnaire», na prestigiada coleção «Bouquins (Robert Laffont, 2013). Uma leitura pausada e circunstanciada da obra, nos seus textos testemunhais e literários, permite dizer que se trata de um repositório cuidado, diversificado, representativo e rigoroso – o que não é fácil num trabalho como este, com diversos registos, muitos colaboradores e um conjunto muito vasto de informações para quem esteja deveras interessado em conhecer Lisboa, para além de informações superficiais.

COMEÇANDO POR CESÁRIO

Quem melhor do que Cesário Verde para nos dar o ambiente de Lisboa? «Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer / (…) E evoco, então, as crónicas navais: / Mouros baixéis, heróis, tudo ressuscitado! / Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! / Singram soberbas naus, que não verei jamais!». E com ele, há muitos autores que deram o seu testemunho sobre a cidade luminosa. Na edição dos Bouquins sobre Lisboa há várias leituras da cidade, um retrato cultural e um dicionário que nos permitem dizer que estamos perante uma introdução útil para a compreensão de quem somos. Somos, de facto, muito mais do que a Arcada e S. Bento, e nesta obra é a cultura contemporânea que aparece esboçada nas suas raízes e contornos. Gonçalo M. Tavares assina uma reflexão a partir de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos. Interrogam-se as vibrações, há um chão a falar permanentemente – «é preciso conhecer as canções, as palavras, a pronúncia, os insultos, os modos rudes e delicados da sua língua». Só assim percebemos o que é Lisboa. E a história da cidade é-nos relatada pela pena experimentada dos melhores especialistas e estudiosos de uma realidade plena de mistérios e segredos. José Sarmento de Matos convida-nos à viagem, analisando as raízes e as origens, os mitos e as realidades, a fundação fenícia, a invocação romana, as referências a Ulisses, as presenças goda e moura, a reconquista cristã, as partidas e as chegadas.

PERMANÊNCIAS SIMBÓLICAS
As permanências simbólicas levam-nos a Caius Solinus, para quem a cidade fundada por Ulisses, no seu regresso a Ítaca, «separa do mundo, o céu, as terras e os mares»… Nuno Senos fala-nos da cidade na sua relação com o mar, como capital atlântica (1400-1600), sendo o Paço da Ribeira a referência fundamental. Mas a cidade tornou-se viúva quando a fina-flor da nobreza portuguesa pereceu e ficou sem rei nas areias de Alcácer Quibir. E Ana Maria Binet traz-nos o «espírito messiânico que sopra sobre a Lisboa Barroca» a partir da procura de um «Desejado», lendo as «Trovas» do Bandarra, sob a influência dos cristãos-novos e da «Chave do Profetas» do Padre António Vieira, a pensar no Quinto Império. Bruno Leal analisa a cidade desde os tempos da dominação espanhola até ao período das Luzes (1580-1807), passando pela agitação política dos reinados filipinos, na união pessoal, pela Restauração da independência, pelo resultado do afluxo do ouro do Brasil à corte do rei magnânimo, pelos efeitos inquisitoriais até ao terrível terramoto e ao renascimento da cidade da Boa Razão, graças a Sebastião José. Yves Léonard leva-nos à Lisboa dos séculos XIX e XX, desde o último sonho imperial à ligação à Europa. A cidade parece tardar em pôr-se em movimento, vive dilacerada pelas guerras civis, entre o Antigo Regime e o Liberalismo e entre diversas correntes e famílias liberais. Só a Regeneração (1851) permitiu a pacificação e uma sementeira de libras pelo país. No entanto a crise da dívida pública (como uma maldição) levou à bancarrota, à dependência dos credores externos e a um convénio. Depois, vieram a queda da monarquia, a implantação da República, uma ilusão momentânea, o empobrecimento depois da Grande Guerra, a ditadura militar, o corporativismo de Salazar, a neutralidade colaborante, a ponte para América e a coexistência de espiões de todas as potências. Este foi o pano de fundo para a definição de Antoine de Saint-Exupéry: «quando atravessei Portugal, para ir para os Estados Unidos, Lisboa pareceu-me uma espécie de paraíso claro e triste». E assim, após os solavancos de 1958, a guerra colonial e a transição frustrada, chegámos a «Lisboa – cidade aberta», com a revolução democrática de 25 de Abril de 1974. As revoluções e os pronunciamentos aqui se fizeram e depois foram transmitidos ao país por telégrafo, como se dizia no princípio do século XX.

LISBOA, LUGAR PARA PASSEIOS
Um longo capítulo designado como «Passeios» («Promenades») permite-nos ler as impressões dos viajantes estrangeiros do século XV ao XIX. O lusitanista Claude Maffre apresenta-nos uma longa lista, na qual avultam: Jerónimo Münzer, Duarte de Sande, César de Saussure, Marquês de Bombelles, William Beckford, Heinrich Reichard, Laura Junot, duquesa de Abrantes, Isabella Hurst, Hans Christian Andersen, Comte Durand Beauregard e a Princesa de Rattazi. É um conjunto de testemunhos interessantes, com alguns exemplos menos conhecidos, merecendo especial referência o do Marquês de Bombelles, Marc-Marie (1744-1822), embaixador de Luís XVI em Lisboa de 1786 a 1788, e apenas conhecida do grande público em 1979, onde a crítica severa ao atraso dos hábitos lusitanos culmina numa agradável impressão geral na despedida. Sob a designação de «Escapadelas» («Echapées») Álvaro Siza Vieira, Eduardo Lourenço e José-Augusto França dão-nos ainda o retrato impressivo da Lisboa histórica, sendo complementados por notas sobre a arqueologia olisiponense (de Rodrigo Banha da Silva), sobre os aprazíveis jardins de Lisboa (de Cristina Castel-Branco), sobre um diálogo com Sophia de Mello Breyner (de Joaquim Vital), sobre os pavimentos de Lisboa e outras particularidades (de Jacques Damade), sobre um itinerário inventado (de Manuel Graça Dias) e sobre os caminhos artísticos ditados pelos jacarandás (de António Pinto Ribeiro). Segue-se uma antologia, com uma escolha criteriosa, apresentada por Vasco Graça Moura, Anne Marie Quint e Eduardo Lourenço. Lisboa aparece, no dizer do ensaísta, como «um teatro da nossa pequena mas grande história, ou como cena propícia às aventuras dos maiores que nós, antes que nos apareça uma Babilónia de bazar, destituída do seu esplendor imperial, macaqueando os vícios chiques de Paris e Londres». E quem lemos? Ramalho, Eça, Oliveira Martins, Junqueiro, Cesário, Fialho, Teixeira Gomes, Nobre, Brandão, Pascoais, Cortesão, Aquilino, Pessoa, Almada, Régio, Nemésio, Miguéis, Torga, Jorge de Sena, Sophia, Agustina, Saramago, Eugénio de Andrade, Cesariny, David Mourão-Ferreira, Ruben A., Herberto, Ruy Belo, Fiama, Luísa Neto Jorge, António Lobo Antunes e muitos outros, significativos. Lisboa apela sempre à curiosidade. E quanto a estrangeiros temos desde Thomas Mann a António Tabucchi, passando por Giraudoux, Remarque e Morand. E para quem se perder um conselho: orientar-se pela beleza humana. 

Guilherme d’Oliveira Martins

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