QUE CAVALEIRO DE AVENTURAS?…
«A Torre da Barbela» de Ruben A. é um dos romances portugueses mais entusiasmantes do século XX. Só um escritor dotado, a um tempo, de imaginação prodigiosa e de um belíssimo conhecimento da nossa história e cultura, poderia escrever uma narrativa onde, sem sombra de anacronismo, usufruímos um diálogo rocambolesco entre personagens vindos de oito séculos de existência portuguesa. O historiador experimentado associa-se ao romancista culto para nos dar, num registo aparentemente leve, um exemplo de criação moderna de primeiríssima exigência. Ruben A. é na cultura portuguesa contemporânea um caso – desde as suas memórias («O Mundo à Minha Procura») até à investigação histórica sobre o primeiro homem moderno que houve em Portugal – D. Pedro V –, passando pela capacidade de imaginar e sonhar, encontramos a preocupação de ultrapassar a mediania e de fazer da cultura algo que valha a pena e que permita sermos melhores. Foi, assim, um lutador contra a indiferença, a irrelevância e a mediocridade – e por isso arcou com intrigas, incompreensões, invejas e as mais diversas safadezas. Lembro o romance e o seu autor, a propósito de um seu amigo, cujo centenário passou há dias – Ruy Cinatti. Foi ele que inspirou a figura mais complexa e inusitada do enredo romanesco, o Cavaleiro da Barbela, protagonista do amor fantástico pela «prima das franças», Madeleine, que levou Eduardo Lourenço, com a sua proverbial perspicácia, a dizer: «o romance de Ruben A. (…) é o relato dos nossos oito séculos de santa felicidade absurda, do nosso repouso provinciano, perturbado pela presença da nossa longínqua e desenvolta prima francesa, Madeleine. Para Ruben A., a história do amor louco do Cavaleiro da Barbela pela sua prima Madeleine é a história do nosso imaginário erótico, cultural e literário» («Nós e a Europa ou as duas razões», tradução nossa do francês). «Ah, como nós precisamos de ir lá fora aprender essas coisas! Sabe, estamos para aqui a cozinhar bacalhau e a ver navios na barra de Viana. Exportamos enguias e trutas assalmonadas – o resto é esperar por morrer sem ter tomado parte na vida. Passa-nos ao lado».
NÃO SOMOS DESTE MUNDO
Não foi por acaso que Ruben escolheu o seu amigo Ruy Cinatti para inspirar o Cavaleiro da Barbela, no retrato do «drama lírico das nossas deficiências, corrosivas, o tacanho de nossa convivência, radiografia que deixa a nu a falta de progresso em oito séculos de procriação, o monólogo de diálogo que não existe e a beleza de uma paisagem que existe»… No romance o cavaleiro percorre os montes com o garrano da Ribeira Lima, Vilancete, seguido por Abelardo, o falcão imprescindível na caça. É o mais lendário do mundo triangular da misteriosa torre, sintetizando «um sem número de atributos» com permanência «flutuante a um grau acima da maré cheia do equinócio». O encontro com Madeleine é surpreendente, saindo o cavaleiro do seu sono letárgico, com referências que estão a anos-luz das da francesa – o sonho, a aventura, o idealismo, a liberdade e a natureza. Mas essa aproximação constitui a chave da intuição que Ruben A. a propósito da pergunta sobre quem somos. Só um poeta idealista, empenhado em procurar horizontes novos, poderia corporizar o que o romancista queria nesta obra pela qual se sentiu apaixonado. Ruy Cinatti é o contemporâneo que Ruben considera ser uma espécie de alter-ego de si próprio, também dividido entre o respeito das raízes seculares e a necessidade da sua transformação; entre a tradição e o impulso fortíssimo para abalar os fundamentos. Ruben e Cinatti sentem dentro de si essa contradição e a exigência do inconformismo. E, no caso do Cavaleiro, estamos diante de um Quixote à nossa medida, misturado com o «pobre de mim» de Fernão Mendes Pinto. O amor louco que o Cavaleiro protagoniza com Madeleine (e o inesperado rapto por esta) contrasta com o fechamento e a acomodação dos mortos-vivos, que são os Barbelas e que representam Portugal. Contudo, o romancista, por um lado, e o poeta seu modelo, por outro, recusam o fatalismo da irrelevância. Por isso, o Cavaleiro é uma referência singular e única. «Ali, lado a lado, Madeleine e o Cavaleiro digladiavam-se na procura da felicidade que cada um trazia dentro de si. Dois mundos que se mediam animados pelo fogo de uma chama intransmissível».
EM PROL DA CONDIÇÃO HUMANA
Há dias, a convite de um amigo, o escritor timorense Luís Cardoso, participei na celebração do centenário do nascimento de Ruy Cinatti (1915-1986). Foi a generosidade e a determinação desse «Cavaleiro de aventuras» que lembrámos, como poeta maior da nossa língua e como timorense do coração. «Dizia o que pensava – sua magnânima qualidade». Ele nos ensinou que o mundo da língua portuguesa é um condomínio e que o humanismo universalista nos leva à confluência entre uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. E em Timor, Cinatti não apenas procurou colocar-se ao serviço do povo que tão intimamente amava, mas também usar a sua experiência de agrónomo e antropólogo em defesa de uma natureza luxuriante ameaçada. Foi uma personalidade complexa e fascinante, o amor fraterno atraía-o, o sonho era o seu ambiente natural, a descoberta das diferenças a sua paixão, a ciência e o espírito andavam sempre consigo, numa ligação fecunda. Poeta dos «Cadernos de Poesia» (1940), com José Blanc de Portugal e Tomaz Kim, bem como da causa de Timor, sobre ele Peter Stilwell escreveu «A Condição Humana em Ruy Cinatti» (Presença, 1995), obra imprescindível para compreendermos não só a qualidade poética do autor de «Nós Não Somos deste Mundo», mas para entendermos a importância da sua capacidade criadora e da sua espiritualidade.
UMA AURA INULTRAPASSÁVEL
Francisco de Sousa Tavares falou do poeta seu amigo como possuidor de uma «aura inultrapassável»: «era necessário que a rara magia da sua personalidade única ficasse presente na nossa consciência como um traço de uma raça superior em que não havia ódio nem ambição desmedida e a relação dos homens fosse regida por uma lei primária – a lei da generosidade e do amor». É difícil dizer melhor sobre quem foi figura única, que sonhava com a verdade e a justiça, que muito dificilmente encontrava em fugaz vislumbre. «E eu – pobre de mim! – tão grande calma / Faz-me sofrer por não saber dar mais. / Oxalá que alguém viesse ensinar-me / O silêncio que, a sós, vai purificar-me: / Senhor! Porque não vens, porque me atrais?!». Eis o paradoxo e a dualidade. Sempre que estive em Timor-Leste recordei a lição de Ruy Cinatti. Foi das pessoas que levantaram o véu sobre essa terra e esse povo, vivendo intensamente o drama da distância e da proximidade: «O sol enche de luz um espaço meu / Maromak-Oan / (macho-fêmea). / Bandeira em pleno! / Timor em festa! / Timor tão longe que não vejo / passos meus andando praias / – Suai-Tíbar! / Ó Lulik acorda os homens. / Ergue-os ao ápice arbóreo! / (…) Timor surgindo / Mar indomável!…».
Guilherme d’Oliveira Martins