CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS
Há circunstâncias históricas aparentemente fortuitas que podem tornar-se decisivas ou pelo menos ter consequências significativas para o curso dos acontecimentos. O que a seguir se lembra é um bom exemplo do que acaba de se dizer. Na biografia de Mário Soares, Nelson Mandela surge ligado a um momento dramático da sua vida, aquando do acidente ocorrido com João Soares e que o levou à África do Sul, depois de ter completado exemplarmente as visitas de Estado à Hungria e à Holanda. O que aconteceu então foi que, apesar das condições muito difíceis que rodearam essa ida a Pretória, Mário Soares pôde contribuir, no plano político, para a evolução sul-africana. Havia que romper com a experiência do apartheid e suscitar uma evolução democrática. O Presidente Botha tinha-se demitido em agosto de 1989 e tinha sido substituído por De Klerk. Logo no Aeroporto, quando o Presidente português chegou, profundamente preocupado com a saúde do filho, Pick Botha convidou Mário Soares para almoçar com o Presidente De Klerk. O momento era muito difícil. A evolução da saúde de João era muito incerta e problemática. No entanto, Soares assim que compreendeu que as coisas poderiam ter um caminho positivo, aceitou o encontro, no qual foi acompanhado por Maria de Jesus e pelos Embaixadores José Cutileiro e João Diogo Nunes Barata. O que sabemos desse encontro permite-nos dizer que foi muito significativo – depressa se tendo passado do formalismo para uma troca de ideias com evidente sentido e consequência políticos. Naturalmente que o ponto de partida das autoridades sul-africanas era muito tímido, receoso e conservador, considerando a própria história complexa da África do Sul. Tudo aponta, porém, para que a experiência do prestigiado político português se tenha revelado fundamental. Mário Soares começou por lembrar: “quando o professor Marcelo Caetano substituiu o ditador Salazar, por incapacidade física deste, prometeu ao País fazer uma liberalização. Mas não teve a coragem de a fazer, ficou-se apenas por superficiais mudanças de nomes. Cinco anos depois foi destituído por uma revolução militar que veio já demasiado tarde para permitir uma transição democrática gradual e controlada, tanto da política interna como da colonial”…
COMPREENDER A DEMOCRACIA
O testemunho é-nos dado pela indispensável biografia de Maria João Avillez. A evolução é conhecida, devendo acrescentar-se o segundo exemplo suscitado por Mário Soares na altura, provinha de Espanha: “o Presidente Adolfo Suárez, em visita a Lisboa assegurou-me (disse M. Soares) estar disposto a fazer a ‘transição democrática’ no seu País. Quando, porém, lhe perguntei se tencionava legalizar o Partido Comunista, respondeu-me que não poderia fazê-lo, porque os militares nunca o autorizariam. Disse a Suárez que, nesse caso, nunca lograria assegurar uma verdadeira transição para a plena democracia. Expliquei-lhe que o Mundo estava à espera de uma rutura com o passado, que passaria simbolicamente pela legalização do Partido Comunista. Sem ela as suas boas intenções nunca ganhariam credibilidade nem consistência. Dias depois, o próprio Presidente A. Suárez teve a amabilidade de me telefonar, dando-me conta de que tomara a resolução – que ia publicamente anunciar – de legalizar o Partido Comunista Espanhol. Percebi que o corte com o passado ia ser consumado e que a Espanha entraria num período novo”. Depois destas duas referências, Mário Soares dirigiu-se a De Klerk e disse-lhe que só se pusesse Nelson Mandela em liberdade e se comprometesse publicamente a renunciar à política do apartheid a Europa, os Estados Unidos e o Mundo acreditariam na vontade de uma verdadeira transição democrática – mas se hesitasse e ficasse pelo meio caminho por falta de coragem, alguém, um dia, mais tarde ou mais cedo, o iria fazer por si. O Presidente sul-africano agradeceu a franqueza e ficou impressionado com os argumentos. Quando Soares deixou a África do Sul, Pik Botha veio despedir-se e trazia uma mensagem do Presidente De Klerk. Haveria uma verdadeira transição, uma rutura, iria ser anunciada a libertação dos presos políticos, sendo Mandela libertado dois ou três dias depois e o apartheid seria banido do País…
UM MOMENTO INESQUECÍVEL
Mário Soares acolheu a mensagem com muita alegria, comprometendo-se a convidar o Presidente De Klerk para visitar Portugal logo que esses objetivos fossem concretizados. E assim o Presidente português considerou o Presidente sul-africano “como um dos mais lúcidos e corajosos do nosso tempo, cuja estatura política não deve ser esquecida quando se enaltece, muito justamente, a figura ímpar e humaníssima de Nelson Mandela”. Continuando a seguir o testemunho de Mário Soares, lembramos o que disse nos momentos imediatos à libertação do resistente sul-africano. “Quando li o discurso proferido por Mandela, ao ser libertado, percebi imediatamente tratar-se de um homem excecionalíssimo de nunca cair na tentação de vingança, tendo passado por perseguições e violências sem guardar o mínimo ressentimento”. Trata-se de seguir o melhor exemplo de quantos no fim da grande guerra, ao saírem dos Campos de Concentração, foram capazes de dizer e de ser coerentes com tal afirmação – que deveriam esquecer a vingança e o ressentimento contra os autores de violência, para impedir a escalada do terror; e que deveriam lembrar onde chegara a barbárie e a cegueira, para que tal não voltasse a acontecer. Esquecer e lembrar são igualmente deveres éticos, para romper com o rancor e o ressentimento e para prevenir o regresso da violência. Em maio de 1994, Mário Soares deslocar-se-ia a Pretória para assistir à tomada de posse do já então Presidente Nelson Mandela e a sua recordação é inesquecível: “Fiquei extremamente impressionado com o discurso que ouvi nessa cerimónia. Proferiu palavras extraordinárias, porque revelaram a sua nobreza de carácter, o seu sentido de dignidade, o seu espírito humanista. Apesar dos longos anos que viveu na prisão, mostrou não sentir qualquer ressentimento, sublinhando que o que mais importava era construir a paz, colaborar no progresso do País, implantar um espírito de tolerância e de sã convivência entre todos. Teve, inclusivamente, palavras de afeto para com dois dos seus carcereiros, que convidara para o banquete oficial, colocando-os ao lado das inúmeras personalidades mundiais presentes”. Mais tarde, Mário Soares integraria o júri que atribuiu a Mandela e a De Klerk o Prémio Houphouet Boigny, tendo ambos sido também laureados com o justíssimo Prémio Nobel da Paz… Nobreza de carácter, sentido de dignidade e espírito humanista – eis o perfil que deve ser realçado, como um modelo para a vida política e cívica. Num tempo em que há tantas nuvens ameaçadoras no horizonte, em especial no tocante ao medo das diferenças e à falta de coragem no sentido de lançar pontes para o diálogo, é indispensável ter bem presente o exemplo de Nelson Mandela, como herói do nosso tempo. Para usar uma expressão cara a Emmanuel Mounier, “o acordar da África Negra” obriga a uma consciência de liberdade, responsabilidade e respeito mútuo, que o exemplo de Mandela bem representa…