António Alçada Baptista representa na história cultural portuguesa um singular exemplo que não pode ser reduzido a uma suposta ambição política nem alvo de desatenção. Nada mais enganador do que desvalorizar o seu lugar crucial na preparação da democracia. Vindo de um meio conservador, com fortes raízes na sociedade beirã, sendo destinado a um percurso tradicional de uma advocacia de influência, depois de uma formação nos jesuítas, António Alçada recusou esse destino, apesar de ter começado por sentir um sucesso possível nos primeiros passos que começou a trilhar. Com todas as resistências do antigo regime, as mentalidades, as influências, os debates, os autores, as tendências artísticas, tudo foi mudando no final dos anos quarenta e cinquenta. Havia tensões contraditórias que a geração de Alçada Baptista soube interpretar. O «reviralho», a partir de 1945, sentiu uma evidente atração por quem tinha sido importante entre os aliados contra o domínio do «eixo», a União Soviética. Os temas sociais e o chamado neorrealismo vão ocupar um lugar proeminente. Mas, nos Estados Unidos, o «macartismo» e a caça às bruxas criaram um clima que serviu para fortalecer as simpatias intelectuais relativamente às suas vítimas. Para um católico com preocupações críticas, os motivos da rutura prendiam-se com a confusão de uma cruzada política que acenava com os fantasmas do anticlericalismo e do jacobinismo que tinham levado ao fim da Primeira República. Salazar sobrevivera em 1945 contra as expectativas de alguns, uma vez que a «guerra-fria» evitara a liberalização a sério na Península Ibérica. Mas havia transformações, e António Alçada cedo começou a compreendê-las – até porque os motivos de desconfiança iam-se acumulando. Os monárquicos perceberam que a hipótese de uma restauração, acenada numa base equívoca, tornara-se uma ilusão irrealizável pela «situação», por falta de vontade de Salazar e dos eventuais delfins. O caso do Centro Nacional de Cultura, fundado por jovens monárquicos em 1945, é ilustrativo – evoluindo no sentido de uma atitude democrática e pluralista.
INDO UM POUCO ATRÁS
Logo em 1945, houve esperanças numa abertura. Alguns (poucos) católicos empenharam-se na democratização no MUD. Aí encontramos Francisco Veloso, antigo dirigente do Centro Académico da Democracia Cristã, além do Padre Joaquim Alves Correia, missionário espiritano, de Sebastião José de Carvalho, monárquico liberal e de José Vieira da Luz. O Padre Abel Varzim saíra do lugar de deputado à Assembleia Nacional no final da legislatura de 1938 a 1942, tendo os membros da Liga Operária Católica (LOC) abandonado os postos diretivos dos sindicatos nacionais. Há ecos de que o Padre Varzim teria sondado algumas personalidades católicas para a eventual criação de um Partido Democrata-Cristão. Em 1946, o Padre Joaquim Alves Correia é exilado nos Estados Unidos, depois de ter publicado no «República» um artigo sobre a «noite sangrenta» de 1921. A publicação do jornal «O Trabalhador», da Ação Católica Operária, é suspensa no mesmo ano. Na campanha eleitoral de 1949, em que concorre Norton de Matos, um jovem católico, da Faculdade de Direito de Coimbra, Orlando de Carvalho, afirma: «A Ditadura porque não é um sistema de governo, mas um interregno na vida política normal (…) não tem de pensar em como renovar-se, em como subsistir, mas apenas em como findar e o mais depressa que puder (…). O único critério que até hoje me pareceu suficiente de renovação é o critério do povo, da consulta popular sincera» («Diário Popular», 24.1.49). Em resultado, o jovem vê suspenso o seu contrato.
Pode dizer-se que, a partir do ano emblemático de 1958, António Alçada Baptista deu, nos meios culturais, com a Livraria Morais e depois com «O Tempo e o Modo», um contributo decisivo para pôr em xeque a chamada «frente nacional» de Salazar, do mesmo modo que a candidatura presidencial de Humberto Delgado, antigo símbolo do regime, e, na Igreja Católica, o memorando do Bispo do Porto dirigido a Salazar. É simbólica a fotografia do católico Francisco Lino Neto, com a cabeça ensanguentada, atingido pela polícia de choque na manifestação de apoio a Delgado. Estava, no fundo, em causa o que Alçada afirmaria na «Peregrinação Interior»: «Peço e insisto com os senhores especialistas de povos e planificadores de impérios que não se deem por contentinhos com o trabalho que estão a fazer e peço a todos os incomodados do mundo que não desistam de pensar como é que isto se pode consertar». Recorde-se o poema de Ruy Belo «Nós os vencidos do catolicismo». Havia um drama evidente, que misturava o ambiente do final da autocracia com a emergência da Igreja pós-conciliar. Como afirmou o Padre Manuel Antunes, não estávamos perante uma questão puramente portuguesa, apesar de ganhar aqui (e em Espanha) contornos especiais em razão dos constrangimentos políticos. Ruy Belo dirá: «a história do catolicismo português atual, a fazer um dia, não pode deixar de ser uma história dolorosa». A afirmação do poema «não é que no mais fundo não creiamos» revela o caráter de escolha decisiva, que leva o poeta, como o Padre Felicidade Alves, à lógica inconformista. «A modernidade passava também por uma espiritualidade renovada, liberta de dogmas e constrangimentos, aberta aos problemas humanos concretos, ao pulsar da vida, às culturas de protesto que a juventude dos anos 60 ia difundindo numa sociedade bloqueada» – na expressão de Sérgio Campos Matos.
Na «aventura da Moraes» tratava-se de criar um movimento de opinião centrado em leigos católicos (com apoio de alguns clérigos) capaz de concretizar o programa de Emmanuel Mounier de unir católicos e não católicos no combate contra a «desordem estabelecida», ou seja, romper com a cumplicidade da Igreja com o Estado Novo. A ideia de António Alçada Baptista não tinha a ver com a criação de um Partido Democrata-Cristão, mas com uma convergência de movimentos e opiniões que permitisse uma transição pacífica de contornos abertos, segundo a lógica das democracias ocidentais. A ligação ao Congresso para a Liberdade da Cultura (com Pierre Emmanuel e Roselyne Chenu) é um sinal dessa orientação. Tratava-se de tornar ativo, em Portugal, um grupo de intelectuais sem vocação partidária ou até cristã. Por isso, Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio participaram na fundação de «O Tempo e o Modo». Mas Mário Soares pretendia que houvesse uma personalidade aglutinadora de uma corrente democrata-cristã. Esse entendimento deparava, porém, com a objeção do próprio Alçada e da maioria dos seus amigos, para quem não deveria haver uma política cristã, mas cristãos livres, fora de movimentos confessionais. Em nome de «desinteressados ideais», António Alçada ainda acreditou fugazmente em Marcelo, mas nas «Conversas» que publicaria percebeu que a abertura era impossível. A intervenção ética em que acreditava foi mal compreendida. Mas ninguém duvida hoje da importância da sua coragem.