ALGARVE, RICO CULTURALMENTE…
Nestes dias de Agosto apercebo-me de que muitos dos que demandam o Algarve pouco se apercebem da extraordinária riqueza de uma região com virtualidades culturais ainda pouco conhecidas. É magnífico o mar. É rica a terra, mesmo com a secura, sobretudo pela força mediterrânica… Como disse António Ramos Rosa: «No silêncio da terra. Onde ser é estar. / A sombra se inclina. / Habito / dentro da grande pedra de água e sol». É essa grande pedra de água e sol que tem de ser mais valorizada e protegida. Serra, barrocal, costa marítima – tudo se complementa pela extraordinária mata e pelos largos campos do fecundo regadio com o acolhedor odor tão especial dos pomares de citrinos e das vetustas oliveiras milenares. A alfarrobeira é talvez a mais generosa das árvores, que tudo dá, e tanto tempo foi esquecida. «A alfarrobeira, volumosa, possante e muito verde infiltra-se pelos corregos, anunciando a presença do Algarve típico em terras de montanha» (M.V. Guerreiro). As figueiras têm tal diversidade que nos levam sempre ao prazer redobrado de ter frutos deliciosos de junho a setembro – e depois ao usufruto divinal dos figos secos, invejáveis. Minha avó Ana tinha mãos mágicas para garantir que houvesse sempre figos sobre a mesa durante três meses. As amendoeiras, essas são tanto mais belas e capazes de produzir deliciosas amêndoas doces quanto mais frágeis. E não há uvas de prato mais doces do que as do Al-Gharb do Al-Andalus…Tudo é doce, como cantaram os poetas de Silves, quando o Arade era navegável e ali estava a Bagdad do ocidente – romãs, albricoques, damascos, ameixas, melões e melancias, tudo…
TERRA DE LENDAS E ENCANTOS
«Minha terra embalada pelas ondas, / Onde o amor tece lendas e onde as fadas / Em castelos de lua dançam rondas…». É Cândido Guerreiro, que já não conheci, mas de que me falava o avô Mateus, quem elogia esse país de mouras encantadas, com amendoeiras em flor, em fevereiro, que mimam a brancura da neve e revelam os mistérios inesgotáveis da história moçárabe ou da cooperação entre judeus, cristãos e muçulmanos – de que me fala, com conhecimento de causa e entusiasmo (mas preocupação), Adel Sidarus. Aqui o Mediterrâneo tornava-se Atlântico, os fenícios cruzavam-se com os normandos. E os povos misteriosos do Sul, do Sol e do Sal ainda se estão por descobrir, entre vilas romanas e colónias gregas, entre cónios e tartéssios e uma escrita de poetas e comerciantes ainda por desvendar. Há quase tudo por descobrir, o Algarve é finisterra de finisterra, culminando no promontório sagrado, por isso o Infante D. Henrique veio em busca dos descendentes dos marinhos, que não tinham medo das águas e acolheram Ulisses, vindo de Troia em busca de Ítaca. Aqui se plantou a cana-de-açúcar, aqui se capturou o atum, como nas arenas do sacrifício do mar Egeu, aqui se repetiram pescarias milagrosas da sardinha e se desenvolveu a indústria conserveira… Em Querença, homenageou-se a Literatura, sob o espírito protetor do Professor Manuel Viegas Guerreiro e da sua Fundação. O Festival Literário de Querença (FLIQ) enalteceu a Palavra «em todas as suas formas – dita, lembrada, escrita, cantada, subvertida, dançada, repetida, encenada, discutida… e os seus protagonistas» – no dizer de Luís Guerreiro, que está de parabéns e merece um especial aceno em nome da arte, da educação e da cultura… E pudemos ouvir Casimiro Brito em «Arte da Representação»: «Amar é aspirar as forças generosas que me rodeiam, o sol e os lumes, as fontes ubérrimas que vêm do fundo e do alto, água e ar, e derramá-las no corpo irmão, no cadinho que tudo guarda e transforma para que nada se perca e haja um equilíbrio perfeito entre o mesmo e o outro que tu iluminas». E não esqueço ainda a homenagem recente do Município de Loulé a Lídia Jorge, com a presença do Presidente da República, que constitui mais do que um reconhecimento pessoal – é o elogio da cultura, da educação e das humanidades, num sentido amplo, a que a autora de «O Dia dos Prodígios» tem dedicado a vida inteira.
UM ETNÓGRAFO DE EXCEÇÃO
Manuel Viegas Guerreiro, com quem tive o gosto de falar longamente, como mestre dos mestres, discreto, sábio, memória viva da Etnografia, discípulo dileto de José Leite de Vasconcelos e de Orlando Ribeiro, deve ter aqui uma referência especial, sobretudo para quem deseja que o Algarve Cultural entre mais na ordem do dia. Lembro-o como se fosse hoje e nunca o esquecerei. «A cultura é só uma, tudo o que aprendemos do nascer ao morrer, da nossa invenção ou alheia, sentados nos bancos da escola ou da vida». Recordo, por isso, a sua descrição colorida de uma peregrinação científica a Monchique. E poderíamos também lembrar o extraordinário «Uma Excursão à Serra do Algarve» (C.M. Loulé, 2ª edição, 1991), onde invoca o sobreiral das umbrias que «não move uma folha. Nem homens, nem aves, nenhum indício de vida animal. Um silêncio absoluto de sonho e mistério. Quase me parece sacrilégio misturar palavras ao divino sossego da Natureza»… Mas ouçamo-lo então, no Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro (volume I, 1984): «Alugados na vila dois burros e um guia, abalámos para a Foia. Os burros e o moço ora atrás ora adiante de nós a pé, o mestre (Orlando) fazendo matéria de tudo quanto via, dos acidentes do terreno aos modos de vida e formas de povoamento. Do cimo da Foia pelo Barranco dos Pisões até à estrada principal. E de casa em casa, de moinho em moinho, nos foram enchendo de viático e sobretudo de aguardente, da sua aguardente sempre a melhor, ritualmente obrigatória, que nos ia tomando o corpo. E os burros adiante e os burros atrás, e nós sempre a pé até Monchique. Alongavam-se as sombras da tarde e mesmo assim, o corpo cansado, nos metemos a caminho das Caldas, por trilhos e corta-mato, da Picota à pensão do Fernando, onde chegámos à meia-noite, depois de penosas horas de marcha, em que até nos perdemos, mais mortos que vivos, mas não tanto que nos não regalássemos com uma soberba refeição. Trabalho de campo e trabalhos de campo foi o que nesse dia tivemos». Estou a ver o quadro todo: os burros e as cangalhas, quantas correrias neles fiz…, o moço distraído do cansaço dos mestres, a subida íngreme da serra, os caminhos e os trilhos irregulares, e depois a soberba canja de galinha pica no chão e o arroz de cabidela e, por fim, os lençóis de linho gelados e uma manta de papa para aquecer… Era assim a Etnografia e a Geografia na prática. E era assim essa relação de Viegas Guerreiro e de Orlando Ribeiro à cata do Algarve profundo. E, quanto a Orlando, «era um regalo vê-lo conviver com o povo, com o “bonito modo” que este tanto aprecia. Aonde quer que se demorava, deixava saborosa lembrança. Fomos um dia ao mar, à pesca da sardinha, ao largo de Portimão, e foi o bastante para nunca mais ser esquecido pelo mestre José Estêvão, que levou anos a perguntar-me pelo Doutor Orlando».
Guilherme d’Oliveira Martins
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