A Vida dos Livros

De 21 a 27 de dezembro de 2015

«Reflexões sobre a Revolução em França» de Edmund Burke (Fundação C. Gulbenkian, 2015), com tradução de Ivone Moreira, é uma obra-prima do pensamento político europeu. Foi publicada em 1790, um anos após a Revolução, num momento em que o chamado «terror» ainda não se tinha manifestado – apesar de alguns sinais premonitórios se fazerem sentir.

UM PENSADOR COM ATUALIDADE
Se há livro que tem sido alvo de muitas curiosidades e comentários é este da autoria de um prolífero político «whig», conhecido pelas suas reflexões sobre os mais importantes problemas do seu tempo. Em boa hora, a coleção de clássicos da Gulbenkian, na qual se incluem as traduções de obras fundamentais da história do pensamento, integrou este importante texto no seu acervo. Burke tem sido referenciado como precursor do pensamento conservador contemporâneo, apesar de, no seu tempo, ter sido um liberal reformista, quando tal qualificativo se reportava àquilo que hoje (com algum anacronismo) podemos designar como o centro-esquerda. Sem entrar nesse tipo de considerações, preferimos salientar que contribuiu decisivamente para o pensamento e a organização modernos da democracia. O liberalismo político e social referia-se ao exercício das liberdades públicas, à limitação do poder, ao pluralismo e à ideia de sociedade aberta. E nesse ponto, pode dizer-se que o livro hoje tem a importância de pôr a tónica na liberdade pessoal e na sua relação com a vida das instituições. Daí que as simplificações sobre Burke sejam abusivas, podendo dizer-se que, ao lado de Montesquieu, estamos perante um exemplo decisivo para a compreensão do constitucionalismo moderno – enquanto modelo dinâmico e compromissório, assente na limitação do poder político, no primado da lei e nas legitimidades da origem e do exercício.
 
A FORÇA DAS REFORMAS
Nascido em Dublin em 1729 (ou segundo alguns em 1730) e falecido em 1797 em Beaconsfield, era filho de um advogado anglicano e de uma católica originária de uma família tradicional. A escolaridade, até frequentar o Trinity College de Dublin, foi feita primeiro numa escola católica e depois em Ballitore, sob a direção de um protestante heterodoxo Quaker. Contrariando a vontade do pai, não seguiu uma carreira jurídica, antes preferindo a literatura, o jornalismo e a intervenção política. Depois de ter recusado continuar como assistente de William Hamilton, tornou-se secretário privado do First Lord of Treasury, Lord Rockingham, líder dos Whigs. No partido liberal, onde começa por ser eleito a convite do seu amigo William Burke, será porta-voz na Câmara dos Comuns durante 28 anos… Quando Lord Rockingham assumiu o cargo de primeiro-ministro (1782), Burke tornou-se Paymaster-General of the Forces, lugar relativamente modesto, de exercício fugaz. No entanto, aproveitou a oportunidade para fazer aprovar uma importante reforma da despesa da casa real, reforçando o controlo e a disciplina financeira. Nota-se desde cedo a defesa da ideia segundo a qual o reformismo é o método mais eficaz, por contraponto às mudanças súbitas, ditas revolucionárias. A realidade social não pode ser vista como uma «tábua rasa», tem de ser considerada como um ponto de partida, a transformar gradualmente. «Há uma grande diferença entre mudança e reforma. A primeira altera a substância dos alvos da mudança (…) desembaraça-se do que neles é bom assim como do mal acidental que lhes está anexo (…) a reforma não é uma mudança na substância (…) mas uma aplicação direta de um remédio às queixas (…). Inovar não é reformar». Aqui temos uma síntese do pensamento de Edmund Burke. Para ele, o que caracteriza a reforma é a capacidade de defender o bom que existe. O aperfeiçoamento das instituições deveria ser gradual, seguro e baseado na ideia de corrigir o que não funciona bem. Para Burke, o respeito pelo espírito da Constituição ancestral constituía o cerne do bom funcionamento da representação política. Daí a necessidade de reformas de âmbito limitado, mas eficazes e justas. Os temas que o ocupam na vida parlamentar demonstram bem a preocupação que tem em conseguir resultados efetivos, mais do que gestos espetaculares: a liberdade religiosa na Irlanda leva-o a combater as diversas formas de discriminação contra os católicos; a abolição da escravatura é encarada como um objetivo global e necessário, com recusa da mera regulação do tráfico; a defesa dos indianos contra os procedimentos da Companhia das Índias Ocidentais levou à aplicação de sanções aos responsáveis por atos tirânicos; e, apesar de não defender a independência norte-americana, assume claramente a posição de sustentar a posição dos colonos americanos, em especial perante algumas medidas do império britânico (como o imposto do chá), que contrariavam a política tradicional de respeito pelos legítimos interesses em presença. Contra a «cautela mesquinha» (reptile prudence), Edmund Burke defende a prudência inteligente, com salvaguarda dos princípios, da dignidade pessoal e do bem comum.
 
UMA LONGA CARTA PARA O FUTURO
Quando, em 1790, publicou, sob a forma de Carta a Charles Jean François Depont, a crítica ao modo e aos fundamentos da Revolução em França, Burke causa surpresa, quer entre os seus colegas «whigs» (como Charles James Fox), que consideram estarem os acontecimentos franceses na linha da Gloriosa Revolução (1688), quer junto de amigos americanos (como Jefferson ou Paine), que julgam haver uma contradição na atitude de antigo defensor da liberdade… Quanto à Revolução inglesa, Burke fala de um ato de unanimidade nacional e baseia-se na ideia de que há uma continuidade constitucional, que não se encontra em França. O mais curioso, porém, é que o deputado liberal, escrevendo antes do terror e da condenação à morte de Luís XVI, antes das expropriações dos nobres, antes da emergência de Napoleão e das invasões francesas, antevê com especial clarividência uma evolução perversa. «A velha ferocidade parisiense rebentou de um modo chocante (…) Se isto é carácter e não acidente, então este povo não está preparado para a liberdade (…) Entretanto, o andamento de todo este assunto é um dos mais curiosos materiais para especulação que alguma vez se viu». Não estão em causa os males do «Ancien Regime» ou os erros contra os quais se levantam os intelectuais que estão na base do movimento em França. Não está também em causa a possibilidade de a Revolução em França corresponder a um desígnio da Providência com efeitos positivos futuros. Burke pensa, contudo, nos riscos para a sociedade britânica do alastramento da atitude: «Preferia que os meus compatriotas recomendassem antes aos nossos vizinhos, fossem eles quais fossem, o exemplo da Constituição Britânica do que tomassem o modelo das constituições estrangeiras para melhorarem a nossa. Com a nossa Constituição receberam um inestimável tesouro. Penso que têm alguns motivos de preocupação e de queixa, mas não se devem à Constituição, mas à sua conduta. Julgo que a nossa feliz situação se deve à nossa Constituição – e deve-se a todo o seu conjunto e não a nenhuma das suas partes isoladamente -, deve-se em grande medida, àquilo que fomos deixando ficar nas nossas várias revisões e reformas constitucionais e também àquilo que fomos acrescentando e alterando. O nosso povo encontrará uma tarefa à altura de um espírito verdadeiramente patriótico, livre e independente, protegendo da violação o que possui. Também não excluiria a alteração, mas, mesmo quando mudasse, seria para preservar». Não há, pois, uma ideia imobilista ou de mera conservação. Há a compreensão da importância do movimento e do sentido crítico. E o certo é que o tempo revelaria haver razões fundadas para apontar os riscos, tendo-se o curso da História encarregado de demonstrar que o método usado em França obrigaria a uma longa e complexa correção de rota, pelos avanços e recuos perniciosos. Através de Burke, percebemos que a democracia moderna tem como matriz a Gloriosa Revolução, e foi completada pelos movimentos americano e francês. O contrato social burkeano corresponde à lógica representativa, pluralista e gradual – que, afinal, se revelou a mais segura e durável, segundo a continuidade constitucional do consentimento e da justiça intergeracional.
 
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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