A Vida dos Livros

De 20 a 26 de outubro de 2014

«Um Mundo que Falta Fazer» e «A Insurreição de Jesus» de Frei Bento Domingues, O. P. (Temas e Debates, 2014) são coletâneas que, apesar de reunirem artigos publicados ao sabor do tempo, têm um sentido de unidade que lhes dá grande pertinência. A organização coube à Irmã Maria Julieta Mendes Dias e a António Marujo. E deve dizer-se que os textos não perderam atualidade nem ganharam rugas, merecendo ser lidos com especial atenção num momento em que há tantas vezes a tentação de correr atrás do que a maioria quer ouvir, em vez de se procurar a serenidade do que falta ser feito.

UMA DISCUSSÃO SÉRIA SOBRE VALORES
Ao falar da necessidade de os europeus terem uma discussão séria sobre os seus valores, Ohran Pamuk referiu liberdade, igualdade e fraternidade. Preocupado com a defesa e salvaguarda do património cultural, não como referência ao passado, mas como desígnio do presente e do futuro, o galardoado com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva pôs na ordem do dia o que o pensador canadiano Charles Taylor tem designado como «horizontes de sentido», ou seja, a procura do fundamento das relações sociais e de diálogo, a partir das diferenças que caracterizam a sociedade aberta e plural, onde as escolhas vitais ganham importância e sentido. Sem essa base de liberdade, de respeito e de entreajuda, as escolhas tornam-se vulneráveis, relativas, indiferentes e de valor reduzido, numa palavra: perdem significado. Nunca como hoje, perante tantos perigos e tantas incertezas, Hans Küng foi tão atual e oportuno ao dizer que não haverá paz entre as nações se não houver paz entre as religiões. Esta questão é fundamental e obriga à superação da perigosa indiferença a respeito dos horizontes de sentido. Daí a importância e a dificuldade do tema da liberdade religiosa, como recordou Frei Bento Domingues no Encontro «À procura da liberdade» – liberdade que significa ter ou não ter religião, mas também a salvaguarda da pluralidade das opções, sem confundir planos, cientes de que ninguém pode considerar-se detentor de uma verdade absoluta (leia-se «Um Mundo que Falta Fazer», Temas e Debates, 2014). Como disse o Concílio Vaticano II, demarcando-se de desajustados fechamentos, em «Dignitatis Humanae»: todos os seres humanos «devem estar imunes de coação, quer da parte de pessoas particulares, quer de grupos sociais ou de qualquer poder humano, de tal maneira que em matéria religiosa ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de atuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado a outros, dentro dos devidos limites» (nº 2). Daí também que ciência e fé não possam confundir-se. Nem a ciência pode recusar o problema dos limites do conhecimento, nem a fé pode pôr em causa a procura crítica da verdade e a exigência de avançar no domínio do saber. Importa lembrar a etimologia original da palavra «libertas», como a qualidade da balança (libra) equilibrada e sem travão, que obriga à ponderação permanente do «eu» e do «outro». De facto, o cerne da relação plural na vida em comunidade está no respeito, na compreensão e no reconhecimento.

NÃO À INDIFERENÇA

Não se trata de criar um espaço de indiferença, uma terra que ninguém sente como sua, mas de garantir o reconhecimento das diferenças e das especificidades, em nome de uma integração que abra espaço de relação e de entendimento. Uma sociedade em que as pessoas atuassem com responsabilidade e atendendo ao bem comum estaria por certo mais preparada para prevenir a crise (financeira, mas sobretudo de valores) cujos efeitos sentimos duramente. Por outro lado, perante as manifestações de violência e os sinais de intolerância e de exclusão, Amartya Sen tem dito que aquilo de que se trata é de garantir a necessidade de persuadir as pessoas que chegam, por exemplo, à Europa, ou a uma sociedade diferente que seja aberta, para aceitar a ideia de múltiplas identidades que se completam e enriquecem mutuamente. Voltando a Charles Taylor, a solução não está nos métodos naturalistas (ou positivistas), segundo os quais os fenómenos humanos e sociais, incluindo a nossa subjetividade, apenas são compreendidos no modelo dos fenómenos naturais, usando cânones fechados e redutores de explanação, mas num esforço especial de reconhecimento. A modernidade que corresponde à valorização da singularidade, mas também à complexidade, não pode ater-se à lógica atomística e egoísta. O individualismo é falso. Quando as pessoas perseguem só o seu benefício próprio e imediato equivocam-se. Contra a abstração supostamente liberal preocupada com a noção mecanicista de mercado, importa pensar no imaginário social – na autonomia crítica que deve estar subjacente, na linha de Cornelius Castoriadis, e na criação de elos de confiança, um dos nossos mais importantes recursos morais. Afinal, numa sociedade que valoriza a dimensão ética (o «ethos», como morada e caráter) trabalha-se ativamente para respeitar e reconhecer a dignidade própria e alheia, a multifacetada dignidade humana, da pessoa em si e perante a natureza.

EM BUSCA DO MUNDO INTERIOR

Rainer Maria Rilke afirma em «As Elegias de Duíno» que «o mundo nada será se não for interior». Ao valorizar as pequenas coisas e ao reclamar o debate sobre os valores, Ohran Pamuk relaciona, no fundo, a «vida ordinária» e a interioridade humana, compreendendo que o subjetivismo absoluto tende para o vazio. A singularidade ganha, pois, pleno sentido quando se projeta na compreensão do outro e da natureza que nos cerca. A ideia de «entendimentos partilhados» e a sua procura constituem, assim, elementos essenciais para um autêntico diálogo «entre culturas», sem ilusões, complexos ou artificialismos. O valor das humanidades depende da exigência, da capacidade de superação da mediocridade e do domínio de cada um sobre si. O desenvolvimento do «eu» moderno obriga à compreensão de um percurso que não pode esquecer as noções de altruísmo, de responsabilidade, de partilha, de cuidado e de serviço público. E a fragilidade da democracia deve-se à perda do sentido de bem comum, por ausência de compromisso sério sobre os valores. O mundo secular contemporâneo é caracterizado não pela ausência de religião, mas por uma contínua multiplicação de novas opções religiosas ou espirituais a que as pessoas recorrem para que as suas vidas façam sentido (cf. Charles Taylor, «A Secular Age», 2007). A idade secular que hoje vivemos obriga a compreender o pluralismo, o respeito mútuo, o diálogo entre culturas, a exigência crítica, a recusa da facilidade e da indiferença, mas também significa que o fenómeno religioso não deva ser desvalorizado, sem que haja ortodoxia religiosa impositiva. A religião e o ceticismo vivem lado a lado e muitas vezes no mesmo indivíduo. As pessoas vagueiam entre várias escolhas e constroem o seu próprio caminho. Contudo, o vazio de valores gera, tantas vezes, o apelo à irracionalidade, às seitas e à magia (contra o que justamente alertou Adriana Veríssimo Serrão no encontro referido). Essa tentação limita dramaticamente a liberdade e a autonomia. A Europa e o mundo de hoje precisam, de facto, de uma discussão sobre os seus valores, séria, aberta e crítica.  «Liberté, égalité, fraternité». Para a compreensão da história como um caminho crítico da razão é preciso não reduzir a leitura do mundo a simplificações planas. Temos de entender que as identidades são sempre complexas e que o fechamento e a perspetiva unilateral são sempre gravemente redutoras.

Guilherme d’Oliveira Martins

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