UMA TRADUÇÃO EXEMPLAR
Manuel de Lucena era uma personalidade multifacetada, para quem as palavras tinham um significado especial, ao exprimirem subtilmente os sentidos e os sentimentos. Como investigador político e social usava da subtileza para poder descobrir algo mais do que era visível numa apreciação simplista. Daí a originalidade das suas investigações e conclusões. Todos nos recordamos da perplexidade com que foram recebidos os seus primeiros textos sobre a evolução do corporativismo. Houve quem pensasse que se tratava quase de uma alucinação. Hoje percebemos que a sua intuição era certa e fundamental, até para compreendermos as fragilidades do Estado democrático, tantas vezes tributário dessa ambiguidade antiga que o sociólogo tão bem entendeu. Mas não é este o nosso tema de hoje. Lucena conta-nos em pormenor como chegou à versão publicada na Assírio e Alvim, depois de mais de vinte anos de gestação, desde que Pedro Tamen, em 1963, na Morais de António Alçada Batista, lhe lançou o desafio para fazer a tradução dessa obra-prima. «Lá no assento etéreo, Santa Teresa, inimiga da vaidade (da qual não ouso murmurar que às vezes me parece filha de Deus) terá rezado mais pela salvação da minha alma do que pelo sucesso dos tratos de polé que me preparava para lhe dar. E dei».
COM AMOR À LITERATURA
Sem dar parte fraca, o jovem tradutor empenhou-se intensamente, pelas palavras, pelo amor da literatura. Nada foi fácil. Uma primeira versão ficou pronta em 1964 – e quase lhe pareceu, numa visita a Santa Maria della Vittoria, que a escultura de Bernini (expressão genial de um êxtase) maternalmente lhe sorria: «Fugi tão depressa, com medo de não estar bom da cabeça, que não saberia dizer se era riso de amor ou de comiseração, mas essa foi na altura a minha única dúvida». Pedro Tamen prudentemente guardou a versão numa gaveta. Em 1974 voltou ao tema e em 1980 o desafio regressou. Teresa de Jesus sabia que o seu amigo Manuel iria esmerar-se mais. E teve razão. Envolveram-se o Padre Manuel Antunes, apesar de gravemente doente, mas também M. S. Lourenço, o Padre João Maia, a juntar a vasta bibliografia de primeira qualidade, em especial o livro de Carlos H. do Carmo Silva – «A experiência orante de Santa Teresa de Jesus» (a que se juntou o douto conselho do dito), além de Carlos Romero Muñoz… Mas, diga-se em abono da verdade, que o fundamental foi o trabalho muito sério e persistente de Manuel de Lucena. E se no final, ele julgou que Teresa, quanto «a beatitude» o permitisse, pudesse estar danada com ele – motivo por que tanto se encomendou lá em cima (invocando amigos vários, como Nuno de Bragança, Nuno Cabral Basto, Zé Lavradio, além dos Padres António Magalhães e, naturalmente, Manuel Antunes), a verdade é que só temos a agradecer-lhe pelo resultado alcançado. Ao lermos a obra, sentimos, a um tempo, a força da lição de Teresa de Jesus e o seu talento literário, a que o tradutor procurou (e bem) ser fiel. É verdade que a humildade da carmelita recusou preocupações de estilo, mas o certo é que a clareza que desejou receber do alto, pedindo a Deus que lhe pegasse na pena ou falasse por si – como «já falou noutras coisas que escrevi» – é preocupação maior da Madre e do seu tradutor. Sabendo que o cuidado é a virtude teologal que fica, cultivou-o com especial esmero e deleite (mais do que gosto, como bem demonstra).
OS ELEMENTOS INTELECTUAL E VOLITIVO
Com que cuidado, sentimos Santa Teresa procurar equilibrar os elementos intelectual e volitivo ou cordial… Se os inspirados conselhos do Padre Antunes se inclinavam para a razão, Carmo Silva talvez tendesse para o elemento cordial, procurando ambos equilibrar os fatores – ora a luz, ora o calor, apesar da luminosidade por ambos realçada no testemunho da Doutora da Igreja… Lucena diz caminhar entre os dois polos: «Mas tenho por vezes a impressão de que é a própria Santa Teresa quem oscila, atravessada pelo confronto das escolas». Vicissitudes múltiplas permitiram que a obra se fosse caldeando e purificando, e o resultado é, de facto, precioso. Assim encontramos Teresa Sánchez de Cepeda Dávila y Ahumada, graças à generosa mediação de Manuel de Lucena e ao seu fantástico trabalho incansável de cerzidura, palavra a palavra, dando-nos uma lição sobre como ser «tradutore», sem ser «traditore»… Seguindo a curadora das palavras sublimes, percorremos as sete moradas do castelo interior, progredindo num abrir sucessivo de novas portas: começando pela disponibilidade interior para o trato divino com a oração vocal; e seguindo na oração mental discursiva e meditativa; na oração da amizade ou afetiva; no recolhimento, em difícil percurso da ascese para a mística; na oração da quietude, em que a vontade se suspende; na oração de união, com as potências despertas mas cativas; a culminar na oração de êxtase, em que a alma «atingiu o seu repouso ou já viu tanto que nada a impressiona». São sete moradas, «mas cada uma contém muitas outras – em baixo e em cima e dos lados – com lindos jardins, fontes e labirintos, coisas tão deleitosas que desejareis desfazer-vos em louvores do grande Deus que criou este castelo à sua imagem e semelhança». Antes, porém, deste castelo interior, S. Boaventura previra três estádios: purificação, iluminação e união; enquanto a espiritualidade «sufi» consagrava quatro momentos: de abid ou servidor, de zahid ou asceta, de arif ou conhecedor e de muhibb ou amante que se une à verdade absoluta… Teresa vai mais além e mais ao fundo. E, para chegar aqui, antes das sete moradas, há quatro momentos de regar o nosso horto interior – ao içar a água de um poço à força de braços; com a ajuda dos alcatruzes da nora; ao tirar a água do rio ou ao aproveitar o efeito da chuva, sem especial esforço… Pressentimos o seu método de trabalho, entre os utensílios da cozinha e a lida do convento. Eis o percurso, mais ou menos longo, que tem de ser feito: do recolhimento ao êxtase… A paixão e a razão encontram-se, completam-se e expandem-se ou limitam-se mutuamente. Por isso, Teresa diz, pondo-se do lado da laboriosa Marta, sem esquecer a atitude de Maria: «Crede-me: para hospedar o Senhor, Marta e Maria têm de andar sempre juntas, fazendo-lhe constantemente companhia e recebendo-o como deve ser, sem lhe faltarem com nada. Ora Maria, sempre a seus pés sentada, como poderia dar-lhe de comer se a irmã não ajudasse?»… Manuel de Lucena compreendeu bem essa tensão, porque lhe coube o pedaço de Marta, sem poder esquecer Maria, a quem traduzia – podendo citar Ciorán quanto ao «desejo abrasador de não sobreviver à emoção»…
Guilherme d’Oliveira Martins