VIAGENS COM LIVROS
O Centro Nacional de Cultura tem por hábito e método fazer viagens com livros. Nas peregrinações em Portugal continental, pode dizer-se que o nosso companheiro mais usual é o magnífico «Guia de Portugal», lançado pela Biblioteca Nacional e por um dos mais importantes escritores da língua portuguesa no século XX, Raul Proença. Ao visitarmos Vila Viçosa, mesmo contando com magníficos melhoramentos, voltámos à experiência e ao resultado a partir da obra companheira. A experiência foi feita com o segundo volume do «Guia» (1927), ainda coordenado por Proença, apesar de já afastado, por motivos políticos, dos serviços da Biblioteca – sobre Estremadura, Alentejo e Algarve. O resultado positivo é tanto mais de assinalar, quanto é verdade e que, após muitas décadas, o texto de Raul Proença e de Reinaldo dos Santos, sobre Vila Viçosa, que seguimos, mantém uma pertinência fundamental. É certo que as salas do Paço Ducal estão hoje muito diferentes do que estavam ou do que vieram a estar ao longo do tempo, acabando a fachada de ser devolvida à sua beleza e magnificência iniciais, no entanto podemos contar com textos de uma beleza insuperável, em que a escrita, a sensibilidade e o conhecimento se associam, contando com a informação cultural de que necessitamos para entender a importância do monumento. Lembre-se que colaboraram no «Guia» os protagonistas fundamentais da nossa vida cultural do tempo, a começar na belíssima capa de Raul Lino, o que o singulariza designadamente em relação ao próprio modelo inspirador, o dos célebres Baedecker. De facto, é de um pequeno tesouro que se trata, de que dispomos, graças á iniciativa e à lucidez da Fundação Calouste Gulbenkian e do Dr. Azeredo Perdigão, bom conhecedor da importância e da qualidade do guia, desde as suas origens, ligado aos grupos da Biblioteca Nacional, que tanta importância tiveram na história da cultura portuguesa contemporânea. Depois da morte de Proença, coube a Sant’Anna Dionísio completar até aos anos 70 essa obra ímpar.
O IMPONENTE PAÇO
Ao chegarmos na manhã de sábado ao amplo Terreiro, a fachada do Paço logo se impôs, sobretudo porque o mármore azul ruivina se apresenta em todo o seu esplendor. Além do branco imaculado das paredes das edificações do largo – a igreja dos Agostinhos, o palácio dos Bispos, o templo das Chagas, a torre da capela e o jardim do Bosque ou das Damas – o imponente Paço evoca-nos uma longa história de prestígio e drama. Aguarda-nos o presidente da Fundação da Casa de Bragança, Marcelo Rebelo de Sousa, incansável no acolhimento e nas explicações, chamando-nos a atenção para as últimas intervenções que procuraram devolver o palácio à verdade da sua memória. A imponente edificação foi erigida em 1501, pelo 4º duque de Bragança, D. Jaime, na sua Horta do Reguengo, vindo a habitá-lo no ano seguinte, regressado do exílio, no sul de Espanha, para onde fora, após D. João II ter mandado matar o 3º duque, D. Fernando II. O fundador do Paço ficaria, porém, ligado ao trágico fim de sua mulher D. Leonor de Gusmão, filha dos duques de Medina Sidónia, morta às mãos de D. Jaime, sob a acusação de adultério com o pajem António Alcoforado – sobre cujo episódio Luciano Cordeiro escreveu o drama «A Senhora Duquesa». Reinaldo dos Santos fala-nos da construção, que se prolongou durante muitos anos. Em 1537, a fachada estendia-se do extremo norte à porta principal, chegando em 1571 à sala de Medusa. Foi só com D. Teodósio II, em 1601-02, que se ergueu o último quarteirão do sul e se começou a revestir as fachadas com mármores de Montes Claros, com sobreposição das três ordens dóricas, jónica e coríntia. É esse o período em que o palácio e a sua corte conheceram um momento raro de glória, antes do natural ocaso, que coincidiu com a aclamação do duque D. João II, como rei de Portugal em 1640, como D. João IV. Depois, só o rei D. João V deu importância ao palácio, concluindo o magnífico revestimento da fachada e encarregando das pinturas um discípulo de Watteau, de nome Quillard. Já em 1571, o cardeal Alexandrino, legado do Papa, se deixara impressionar pela riqueza do Paço, não devendo esquecer-se as grandes festas do casamento de D. Isabel, filha de D. Jaime, com o infante D. Duarte, a que assistiu D. João III e o de D. Teodósio com D. Ana de Velasco. Sucediam-se «os banquetes, as comédias, as touradas, os fogos de artifício, as máscaras, as corridas de cavalos e alcanzias, as danças de machatins, os jogos de maroma por “volteadores” italianos, os cortejos triunfais com carros fantasiosamente alegóricos e os torneios e combates de fola com cavaleiros vestidos à nudesca, ou encantados e metidos em torres donde saíam serpentes de fogo – enquanto de contínuo se faziam ouvir as trombetas, atabales e charamelas entre as danças e folias do povo, as “muitas invenções de fogo” e os tiros de artilharia e mosquetaria disparados do castelo, onde flamejavam ao vento os estandartes e as bandeiras».
UMA PORMENORIZADA VISITA
Maria de Jesus Monge, diretora do Museu e Biblioteca da Fundação, com a sua eficaz equipa, explica-nos com grande cuidado e pormenor a riqueza do acervo e as vicissitudes por que passou, em virtude de algumas peças antigas terem ido para a Paço da Ribeira, sendo destruídas pelo grande terramoto e outras para o Rio de Janeiro depois de 1808. Nas escadarias da entrada, vemos as pinturas murais, dos séculos XVI e XVII, que evocam a vitória do duque D. Jaime em Azamor (1513) e segue-se o percurso pelos diversos aposentos, hoje redecorados, segundo uma lógica não centrada apenas no estilo do século XVII, mas na vida e história do Paço. Visitamos as imponentes Salas de Jantar e dos Tudescos, tendo esta no teto de madeira em caixotões as figuras pintadas dos duques, muitas da autoria de Quillard, desde as origens de D. João I e de Nuno Álvares Pereira, pais de D. Afonso e de D. Beatriz Pereira Alvim, até ao muito jovem Príncipe D. José, sendo rodeada por tapeçarias e armaduras austeras que dão identidade ao salão. Sentimos o espírito do Paço ao passar pelas salas de David (com magníficas pinturas de D. Carlos), das Virtudes, de Hércules, dos Duques (com obras de Columbano, Condeixa, Veloso Salgado, Constantino Fernandes, Carlos Reis e José Malhoa), de Medusa, além dos aposentos de D. Carlos e D. Amélia, que permitem sentir o ambiente familiar e trágico das vésperas do regicídio. Os cobres das cozinhas impecavelmente limpos, graças às virtudes do limão, ilustraram o princípio de que a confeção dos alimentos está no coração da vida das casas. Depois do reparador almoço na Pousada, ouvimos as palavras hospitaleiras do presidente da Fundação e homenageámos a figura de D. Manuel II, estudioso da cultura portuguesa, bibliófilo e patriota, como ficou demonstrado durante a Primeira Grande Guerra, pelo apoio que deu às tropas portuguesas, sem ressentimento político, com generosidade e elevado sentido cívico. E houve um entusiasmo redobrado para as visitas à Biblioteca, onde nos foi dado ver preciosidades únicas que se devem a D. Manuel II, entre as quais duas primeiras edições de «Os Lusíadas» e obras únicas do século XVI, além da carta de armas de D. João de Castro. No Tesouro, as joias, as pratas, o ouro e os marfins deixaram a todos extasiados, com especial destaque para a deslumbrante cruz relicário de D. João IV. Por fim, usufruímos da coleção de coches e carruagens, registando junto da célebre Porta dos Nós, do tempo do duque D. Jaime, no estilo manuelino hipertrofiado e túrgido, uma animada fotografia de grupo.
Guilherme d’Oliveira Martins