A Vida dos Livros

De 2 a 8 de fevereiro de 2015.

A realização do Dia de Ramalho Ortigão, graças à parceria entre o Centro Nacional de Cultura e o Centro Cultural de Belém, constitui uma oportunidade significativa para recordarmos, no ano no centenário da morte do escritor, uma importante referência da cultura do final do século XIX, que participou ativamente num dos movimentos mais fecundos da história portuguesa.

FIGURA INESPERADA
José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915) é uma das figuras mais inesperadas no grupo intelectual que pontuou em Portugal no final do século XIX. Antes do mais, não pertence à chamada geração de 1870, até por motivo de idade, mas também por formação ideológica. Neste ano, em que também se celebram 150 anos da «Questão do Bom Senso e do Bom Gosto» (1865), não se esquece que o escritor terçou armas pelo grupo romântico, em defesa do velho mestre Castilho. Lembramo-nos, aliás, do episódio da Arca de Água em que, no Porto, se defrontou em duelo com o chefe de fila dos iconoclastas, Antero de Quental. No entanto, Ramalho foi professor de José Maria Eça de Queiroz, conheceram-se e fizeram uma amizade durável, e esse facto, associado a terem colaborado na escrita, aproximou Ramalho do célebre grupo que emblematicamente tirou uma fotografia, que vale mil programas, no Palácio de Cristal do Porto, pensando nos cães de um leque, para oferecer a D. Emília, noiva de José Maria. Mais do que por motivos racionais, Ramalho Ortigão inseriu-se naturalmente no grupo de jovens que se propunha com novas ideias pôr o país ao ritmo do mundo civilizado.

LIBERTAR-SE DAS AMARRAS…
Com mais ou menos romantismo, Ramalho, compreendeu muito bem que as ideias fluem, nunca param, e que a qualidade do grupo e das suas ideias valia indiscutivelmente a pena. E não esqueçamos o escritor no desempenho das funções de Diretor da Biblioteca da Ajuda, seguindo os passos do velho Alexandre Herculano (e em bom rigor também os de Garrett), sendo verdade que os dois maiores mestres do nosso Romantismo foram sempre especialmente considerados pelos novos das Conferências do Casino Lisbonense! De Garrett, sabe-se que foram as «Viagens» que despertaram a veia literária de José Duarte. E as raízes têm nele uma muito especial função: «o que tenho de bom, física e moralmente, se alguma coisa boa tenho, devo-o às fortes e sadias convivências da minha infância nessa bendita casa de Germalde…». Depois, passou por Coimbra e não se tornou bacharel, tornando professor de Francês no colégio da Lapa… Cultivava um certo dandismo e era assumidamente conservador. Mais do que teorias interessava-lhe saber olhar. No caso do «Bom Senso»… defendera o velho Castilho e acusara Antero, conseguindo descontentar todos, por não ser suficientemente claro na defesa do romantismo gasto. Cansado do Porto, vem para Lisboa como oficial da Academia das Ciências, e não mais deixará a capital. Começa a colaboração com o jovem Eça. «O Mistério da Estrada de Sintra» é escrito a duas mãos. É uma experiência folhetinesca, onde se nota o desatar das amarras românticas de Ramalho. Mas o que dirão os dois autores? «Romance execrável (…) porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr, e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar…». É uma autocrítica inteligente de quem sabia da poda. Se Ramalho não é protagonista das Conferências Democráticas, é testemunha e cúmplice, pois «uma campanha alegre» é o abrir de portas, o dar direito de cidade a esse grupo excecional dominado por Antero – «cabeça verdadeiramente enciclopédica, um dos mais sólidos e profundos entendimentos que tem produzido este século, era como a lógica viva daquele foco intelectual». E como podia o pacato portuense compreender esse movimento estuante de energia? «Aos vinte anos é preciso que alguém seja estroina nem sempre para que o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite. Para se ser ponderado, correto e imóvel há tempo de sobra na velhice»… Eça e o seu amigo Ramalho vão usar a verve crítica para apresentar as fragilidades da pátria e a necessidade de uma reforma. O tom de ambos é diferente, isso é particularmente óbvio quando José Maria parte para Havana e deixa o encargo ao amigo de manter a tarefa de farpear. Ao tom demolidor de um contrapõe-se o pendor pedagógico do outro, mas em ambos há poucas contemplações – o que não agradava especialmente às velhas gerações liberais, que se achavam postas em causa (lembremo-nos do que se disse também de «Portugal Contemporâneo»). Sobre a escrita, o mestre Camilo não tem dúvidas: «Você está escrevendo de modo que eu não leio mais ninguém em português». Os dezassete anos de «As Farpas» constituem um acervo fundamental para se compreender as fragilidades da sociedade nos mais diversos capítulos, mas Ramalho representará a atitude que será, no essencial, para o que Unamuno designou como a idade de ouro da cultura portuguesa, a capacidade de recusa de estarmos condenados a ser pouco relevantes. E, com o tempo, sente-se essa força crítica, que se desvanecerá de algum modo no fim do século com as mortes de Antero, Oliveira Martins e Eça. E se falo de sentido crítico, devo recordar o apoio de Ramalho Ortigão a Rafael Bordalo Pinheiro no «Álbum das Glórias» e no «António Maria». Ao lado de Guilherme de Azevedo (João Rialto), sente-se a presença de João Ribaixo, que é naturalmente a inconfundível Ramalhal figura.

UM PIONEIRO EM VÁRIOS DOMÍNIOS
Literariamente, Ramalho é ele mesmo. Situa-se na melhor tradição garrettiana, com o toque próprio da linguagem naturalista, a caminho do simbolismo. Como os melhores, nunca se submeteu a cânones escolásticos, não se deixando prender pelos ademanes das correntes decaídas. Os livros de viagens constituem um sinal de atenção ao mundo. Olha a sobranceria da pérfida Albion, dá-nos em «A Holanda» uma verdadeira obra de arte, onde lembra que «a fórmula naturalista da arte moderna acha-se inteiramente enunciada depois de duzentos anos na obra dos pintores holandeses». E é em viagem em Veneza que tem a notícia da morte do «mais amado, o mais fiel, o mais honrado companheiro da melhor parte da minha vida» – o seu querido José Maria… No tocante à Arte Portuguesa e ao património cultural, Ramalho foi pioneiro. Não importa que não tenha sido um especialista ou um estudioso. Foi o melhor divulgador. Mesmo assim sob o pseudónimo Simplício Feijão (1884) disse que a arte não poderia contentar-se em ser simples teoria do gosto, devendo ser análise objetiva da obra e do fenómeno artístico… «Eu em vez de crítico de arte sou apenas um simples e modesto artista da crítica, sou um comunicador de impressões pessoais, um viandante que passa, através do seu tempo, contando coisas que viu e dizendo os sentimentos que algumas dessas coisas lhe inspiraram». E isso foi fundamental. Como tinha acontecido na velha revista «Panorama» no tempo de Herculano, Ramalho Ortigão tornou-se um defensor ativo do que designaremos como património material e imaterial, contra a degradação e o mau gosto. Seguindo as pisadas do mestre Joaquim de Vasconcelos propôs a realização de estudos, de inventários, de planos de salvaguarda. Chamou a atenção para a janela do Convento de Cristo de Tomar ou para a pintura de Nuno Gonçalves e antecipou a importância do Turismo («Praias de Portugal», «Banhos de Caldas e Águas Minerais»…). Nos últimos anos, sente a falta de quem tivera por companheiros, mas o sentido geral da sua obra estava traçado. Não o esquecemos! 

Guilherme d’Oliveira Martins

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