A Vida dos Livros

De 19 a 25 de outubro de 2015

«Guerra e Paz – 1614-1714» de Jordi Savall, com Hespèrion XXI, Le Concert des Nations e La Capella Reial de Catalunya é um conjunto de interpretações e de reflexões da responsabilidade dos grupos animados pelo grande músico catalão que nos transportam a um tempo à herança musical histórica, à defesa do património imaterial, da cultura da paz e do respeito da dignidade humana.

TRABALHO ADMIRÁVEL

A atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural a Jordi Savall constitui o reconhecimento de um trabalho intenso e admirável de uma personalidade notável, de um artista e de um cidadão que, no âmbito da música, tem sabido ilustrar e desenvolver um conceito dinâmico de defesa e preservação da herança e da memória históricas como realidades vivas, nas quais o passado é enriquecido no presente para poder projetar-se no futuro como mais-valia. Falar de património cultural é isto mesmo: ter consciência de que a memória viva do que recebemos da História exige o respeito pela responsabilidade que nos levará a fazer da criatividade e da inovação o enriquecimento necessário do que recebemos e legamos a quem nos sucede. Se na atribuição dos prémios da Europa Nostra e do Centro Nacional de Cultura, em anos anteriores, Claudio Magris e Ohran Pamuk representaram, no domínio da literatura, a demonstração de como a memória obriga a tornar ativo, pela narrativa, o diálogo entre o código genético que recebemos, como acervo multifacetado, e a capacidade de sermos nós próprios, enriquecendo o que recebemos, Jordi Savall completa essa mensagem, ligando a arte à síntese fecunda que resulta do diálogo entre culturas e gerações.

SENTIDO LIBERTADOR DA CULTURA
Jordi Savall conta-nos como, nos já distantes anos sessenta, descobriu a magia e a força do «Requiem» de Mozart, na Escola de Música de Barcelona. Como o Danúbio e Istambul, dos anteriores premiados, é a música antiga, agora, que dá sentido libertador à cultura. «Era inverno, chovia, fazia frio, eu tinha uma pequena gabardina, um cigarrito, e estava bêbedo de alegria. Disse então “Vou economizar para comprar um violoncelo”». Depois nunca mais parou, encontrou-se, em 1965, com Montserrat Figueras, violoncelista como ele, no Conservatório de Barcelona, com quem casa três anos mais tarde, depois de ela o ter integrado no Ensemble Barroco Catalão, «Ars Musicae», onde tocava o seu próprio pai de Figueras. Nascido em Igualada, na Catalunha, a 1 de agosto de 1941, filho de um republicano, empregado numa pequena fábrica industrial, Jordi beneficiou do contacto precoce com a melhor música religiosa na escola católica que frequentou. Mas o essencial da obra deste espiritualista laico passou pela sensibilidade única, que cedo começou a cultivar, para descobrir na música antiga motivos fantásticos de beleza e de humanidade. Lembremo-nos do belo filme, premiadíssimo, de Alain Corneau, «Tous les matins du monde», segundo o romance de Paul Quignard, marcado pela música que Savall concebeu e interpretou, em que a viola de gamba, caída em desuso no século XVIII, renasce em todo o seu esplendor, com nostálgica sensualidade, e surpresa de todos. Como tem sido referido, Savall fez renascer a memória barroca com tal força, que quase nos esquecemos de que o seu primeiro disco foi de 1975, depois de um denodado trabalho de estudo, aprendizagem e ensino na Academia de Música Antiga de Basileia. O conjunto Hespèrion XX e XXI, como La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations têm uma marca muito forte de Jordi Savall e de Montserrat Figueras. E a lógica da partilha de talentos e de uma incansável investigação está bem presente. «Gostaria que os meus músicos continuassem para além de mim. Aprenderam a fazer um som e isso pode sobreviver».

IMPROVISAÇÃO NÓMADA
Fazer viver um som, usufruir sons ou êxtases, eis o que entusiasma o mestre, fascinado pela ideia de tornar o património herdado uma realidade que permanentemente se recria numa espécie de «improvisação nómada». Que faziam os velhos «aedos» na Antiga Grécia, senão cantar as epopeias, refazendo-as permanentemente, até a uma cuidadosa maturação? A Ilíada e a Odisseia assim começaram. As «Vésperas da Beata Virgem» de Monteverdi demoraram dois anos para ser gravadas por Jordi Savall, e foram-no numa noite: «trata-se do espírito de duende. São experiências que não se fazem às quatro da tarde, entre duas pausas sindicais». O mesmo aconteceu com a sinfonia «Heróica» de Beethoven, cuja invocação fúnebre foi gravada ao raiar da aurora, pois de outro modo não poderia sentir-se adequadamente a dimensão trágica. Jordi Savall cultiva várias épocas e diferentes culturas, desde a Idade Média a Beethoven, envolvendo influências orientais e ocidentais, do norte e do sul, do Atlântico e do Mediterrâneo… «A Catalunha tem nos seus genes uma conivência cultural, espiritual e humana entre os mundos árabe, judeu e cristão. Tocar estas músicas populares ou eruditas, foi sempre para mim uma atitude natural». Mas que significa esta «naturalidade»? Um esforço muito exigente e rigoroso de investigação, de estudo e de busca incessante das raízes. Daí a noção novíssima de património, como realidade que se atualiza e renova, que se enriquece e desenvolve, permanentemente! Não por acaso, Jordi Savall invoca figuras históricas, como D. Quixote, Cristóvão Colombo, Joana d’Arc, e lugares marcantes, como Jerusalém, Istambul, Arménia e Síria…

CIDADANIA ARTÍSTICA
Estamos perante a cidadania que nos conduz a uma música informada pela História. No entanto, «a História não é o que se pensa conhecer. A sua memória nos livros torna-se abstrata. Para a música, porém, a memória pode tornar-se viva. Só a emoção nos torna responsáveis por um mundo que herdámos e que devemos legar aos vindouros». Eis por que razão o prémio europeu reforça uma vocação multímoda e inovadora. Para o «gambista comprometido» (como lhe chamou «Le Monde», na entrevista que temos vindo a seguir, 26.9.2015), as causas da paz, da liberdade e da dignidade não podem ser alheias à defesa genuína do património como realidade que articula arte e vida, sendo material e imaterial, obras e tradições. Pensemos no trabalho relativo às «Rotas dos Escravos» – pondo em contacto as músicas antigas do México, da Colômbia, do Brasil, do Mali, de Marrocos ou de Madagáscar… «O contacto com esses músicos para quem a música ficou como um modo de sobreviver é vital para mim» – confessa Jordi Savall. «Graças a eles, toco melhor as Suites de Bach ou “Le Tombeau – Les Regrets» de Sainte-Colombe»… De facto, a defesa do património cultural envolve sempre direitos e deveres, autonomia e responsabilidade, conhecimento e compreensão – direitos a usufruir e a entender; deveres a proteger e a salvaguardar; autonomia como singularidade, responsabilidade como recusa de indiferença; conhecimento do outro e das diferenças, compreensão de que pede a nossa atenção e cuidado. Quando Dostoievski, em «O Idiota», põe na boca de Hipólito a pergunta ao Príncipe Michkine se haverá uma beleza que salve o mundo, não há uma resposta, apenas silêncio. Mas na nota a «Guerra e Paz», Savall responde com clareza: «cremos, como Antoni Tàpies, numa arte que seja útil à sociedade, uma arte que pela beleza, a graça, a emoção e a espiritualidade possa ter o poder de nos transformar e possa tornar-nos mais sensíveis e mais solidários»…

                                                                                                                                        Guilherme d’Oliveira Martins

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