MESTRE DE MESTRES
Era Campo de Ourique e chovia. Foi o dia em que, muito justamente, fomos lembrar e homenagear Rómulo de Carvalho na casa onde morou. Com uma ponta de emoção, o Presidente da República não pôde deixar de lembrar, com palavras oportuníssimas do mestre, os tempos em que teve como professor o homenageado de agora. E ficou como marco dessa invocação uma placa, que lembrará a quem por ali passar o professor, o poeta, o homem de ciência, numa palavra, o humanista no sentido mais rico do termo. O quarteirão desse bairro cheio de memórias é, aliás, o mesmo em que viveu Bento de Jesus Caraça… E tal placa levará os passantes à recordação do exemplo de quem foi sempre um legítimo praticante da arte de ensinar e aprender. Sim, porque para o pedagogo de exceção o fundamental era compreender que há sempre uma troca quando se trata de educar. É a aprendizagem a marca da civilização, e é do despertar das consciências e do transmitir de saberes que depende a vivência da cultura. Com que zelo, com que amor sincero, como confessava seu filho Frederico (ao seu trabalho se deve a publicação das Memórias), Rómulo se encarregava de ensinar (a começar na própria casa), nunca como monólogo, mas como autêntico diálogo. Não se tratava, porém, de descer até ao jovem aprendente, mas sim de o elevar ao conhecimento maduro, com a preocupação da clareza e do gradualismo. Para o mestre, haveria sempre que saber dar os passos necessários para chegar ao conhecimento e à compreensão. “Estimular é saber tirar proveito das coisas, saber encantar, digamos, pôr as coisas em relevo, mesmo as coisas insignificantes”. Para Rómulo de Carvalho, o experimentado docente: “o Professor tem de ter qualidades muito humanas e saber expressar-se, manifestar as suas ideias. Os alunos agradam-se disso. Tal como deliram com as experiências”. Mas na arte de educar tem de haver uma dramaturgia. É como se estivéssemos num teatro – com encenação, marcação, representação e climax. O amadorismo ou o improviso não cabiam nos procedimentos de Rómulo de Carvalho. Tudo tinha de estar muito bem preparado. Os alunos são julgadores severíssimos. Apenas se deixam impressionar se tudo for brilhante e irrepreensível. O metodólogo sabia-o, melhor que ninguém, e explicava isso com muito cuidado e rigor aos seus formandos. No testemunho de duas discípulas, Alcina do Aido (minha professora) e de Maria Gertrudes Bastos: “a preocupação que nos procurava incutir com a maior ênfase era a necessidade de, nas vésperas de uma lição em que se previa a realização de uma certa experiência, executá-la com o maior cuidado, testando todo o material até ao último pormenor, na tentativa de evitar qualquer falha que pusesse em risco a conclusão que se pretendia tirar”…
A CHAVE DA CIVILIZAÇÃO
Num texto intitulado Presença de Descartes afirmava: “A finalidade dos estudos deve consistir em orientar o espírito para a construção de juízos sólidos e verdadeiros sobre todos os objetos que se lhe apresentem”. E isto obriga à liberdade criadora – de alguém que foi, em complementaridade perfeita (o próprio diria, no seu sentido autocrítico, quase perfeita), o pedagogo, o praticante da cultura científica, o divulgador e também, com existência própria, o poeta… Não esqueço, como na sua História do Átomo da coleção Ciência para Gente Nova (Atlântida) dizia: “A história do átomo é a história de uma das mais belas vitórias dos homens. Quer-nos até parecer que em todo o desenrolar das atividades humanas nunca a Ciência e a Poesia estiveram ligadas tão intimamente como neste caso”.António Gedeão era uma figura à parte, que não iludia a personalidade do seu criador, mas não se confundia com ele. Daí que Rómulo de Carvalho tenha tido o cuidado de o fazer sair do mundo dos vivos antes dele próprio. De facto, há uma fronteira, que permite compreender que a ciência e arte se ligam, na compreensão dos diferentes métodos que usam. Rómulo de Carvalho era um homem do método. Em célebre artigo publicado na revista “Palestra” em 1959, intitulado “A Física como objeto de Ensino”, afirmava ser “necessário ter cuidado ao considerar a experiência como base fundamental do ensino da Física em vista do seu valor como estimulante do processo indutivo. Realmente, não é a experiência que permite a indução. Somos nós, nós os que ensinamos, com as palavras que escolhemos e proferimos no decorrer da sua execução, com as nossas hábeis insinuações, com as nossas escamoteações oportunas, com o nosso conhecimento sagaz do aluno e das suas circunstâncias. Nós somos, em última análise, o método, o processo, a forma e o modo”. Esta a chave fundamental da Educação, compreendendo-se que estamos sempre perante o complexo desafio de ligar a aprendizagem, o conhecimento, a relação direta entre o professor e o aluno, a valorização do trabalho, da exigência e da justiça. O essencial da educação está na aprendizagem. Esse o elemento crucial, que não pode ser alvo de confusões ou de qualquer tipo de inversão de valores. Só há Educação justa se houver exigência, só a qualidade pode combater a exclusão e a desigualdade.
LEMBRAR TAMBÉM NATÁLIA NUNES
Há poucas semanas, fomos despedir-nos de Natália Nunes. Então pude lembrar, com sua filha Cristina, o percurso multifacetado e rico da mulher de Rómulo de Carvalho, que ele tanto admirava. Não esqueço a última vez que a acompanhei à rua Sampaio Bruno, depois de termos ido ao Liceu de Pedro Nunes homenagear o Professor no seu Laboratório de Física, pleno de recordações e lugar onde pôde exercer a sua missão didática, pedagógica e científica. Foi uma oportunidade para lembrar a personalidade excecional de Rómulo na instituição secular que tanto marcou. Personalidade discreta, Natália Nunes é uma grande escritora, que foi sempre uma cidadã aberta e corajosa, a quem devemos Autobiografia de uma mulher romântica (1955), Regresso ao Caos (1960), Assembleia de Mulheres (1964) e Vénus Turbulenta (1997) – além de contos, ensaios e traduções. Era uma pessoa de rara sensibilidade e de grande cultura – que se singularizou como profissional de referência no mundo das Bibliotecas e Arquivos. Tenho testemunhos de muitos dos com ela trabalharam ou a ela recorreram bem demonstrativos das suas excecionais qualidades. Posso confirmá-lo pessoalmente. Falámos longamente, e era a liberdade da cultura que cultivava e uma fantástica curiosidade pelo mundo e pela vida – como notamos na sua obra, na variedade de temas e situações e no contacto conhecedor com a melhor literatura de Tolstoi, Dostoievski e Balzac, além de Raul Brandão. Nas palavras que troquei no dia da homenagem a seu pai com Cristina Carvalho pude ligar as duas personalidades cativantes que tive o gosto de conhecer e admirar – completavam-se naturalmente e o amor à cultura, à ciência e aos livros era apaixonante.
Guilherme d’Oliveira Martins
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