APRENDER A DIGNIDADE
Falar de Humanidades, hoje e sempre, é reportarmo-nos a uma aprendizagem ligada à dignidade humana. Quando tomamos contacto com um texto clássico, vindo da tradição oral da civilização grega, como a «Ilíada» ou a «Odisseia», ou com um antigo diálogo filosófico, estamos no cerne das Humanidades. Do mesmo modo, quando nos deparamos com o património imaterial da humanidade – a gastronomia, as línguas, as tradições, os costumes – ou com a cultura científica e as técnicas ancestrais e novas. É de Humanidades que falamos – muito mais do que de cultura geral, ou de ideias genéricas. Muitas vezes, julga-se que o alargamento das fronteiras da Humanidades visa diluir os limites entre saberes e enfraquecer as ciências sociais e humanas. Puro engano. Lembre-se os exemplos de Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. É de Humanidades que falamos para qualquer um deles, como procura e encontro de saberes e conhecimentos, que permitam melhor compreender a humanidade. E as modernas neurociências têm permitido salientar a importância da capacidade criadora das sociedades humanas e das pessoas – o poeta e o cientista encontram novos caminhos quanto ao conhecer e à criatividade em processos semelhantes. Por isso, estamos a abandonar o otimismo da autossuficiência, percebendo-se que a ciência económica ou a sociologia, a história ou a biologia, a arte e a física não podem viver separadamente, na ignorância umas das outras. Para tanto, impõe-se um caminho de partilha e de complementaridade. Dê-se dois exemplos recentes: o progresso das novas tecnologias de informação e comunicação não pode fazer esquecer que se impõe reforçar a relevância das relações interpessoais (a robótica deve facilitar a qualidade de vida e a integração das pessoas); do mesmo modo, quando vemos a evolução da ciência económica, facilmente percebemos que a recente crise financeira obrigou a articular cada vez mais o risco e a incerteza como fatores de análise, o que determina que a complexidade e a partilha de experiências entre equipas se tenham tornado elementos cruciais que permitem superar as limitações das explicações unívocas ou centradas em projeções lineares do crescimento económico… A desvalorização das Humanidades tem correspondido, assim, à subalternização da complexidade como método científico transversal – capaz de favorecer a especialização (e não a fragmentação), o espírito de equipa e de compreender que o desenvolvimento humano obriga à articulação das duas culturas de C. P. Snow, sem subalternizações nem complexos de superioridade e inferioridade. Como salienta a Professora Isabel Capeloa Gil: “Sem enveredar pelo género da jeremiada da crise, pretendo (…) pensar a importância das humanidades e ciências sociais como macroárea e propor que, apesar de constituída como saber próprio e disciplinarmente organizado, esta é afinal a base conceptual transversal necessária a qualquer trabalho em ciência. (…) Interessa-me propor uma reflexão sobre a importância social de um discurso sobre a falta de impacto, de utilidade, na verdade, de falta de valor das humanidades e ciências sociais” (in Humanidade(s) – Considerações radicalmente contemporâneas, Universidade Católica Portuguesa, 2016, pp. 12-13). E é daqui que devemos partir, de modo a assegurar a compreensão do fenómeno complexo da criação e de garantir um progresso partilhado de métodos em nome de uma autêntica e profícua cultura científica. E não se pense que o problema é meramente teórico, porque não é, já que está em causa a mobilização de recursos, a definição de prioridades e a existência de condições concretas para o progresso das ciências – com todas as implicações sociais, económicas, políticas, educativas…
BASE DE UM PROJETO EPISTEMOLÓGICO
Importa, no fundo, assumir, como faz Isabel Gil, que as humanidades constituem a base de qualquer projeto epistemológico. Toda a ciência é, no fundo, uma ciência humana. Cabe às Humanidades levantar questões e exercer uma função crítica – pondo na ordem do dia o espanto, donde resulta o pensamento, como origem e impulso da investigação. E assim as Humanidades são definidoras de uma matriz societal, a começar na Europa. Uma ciência de excelência não pode desenvolver-se sem considerar essa força criadora. Mais do que falarmos dos critérios gerais para financiamento de projetos, por exemplo, no âmbito da União Europeia e do Programa Horizonte 2020, no qual se tem verificado uma subalternização das Humanidades (em sentido estrito) e das Ciências Sociais, importa definir com muita clareza a articulação transversal dos diversos campos do conhecimento. E é na transdisciplinaridade que as Humanidades devem ganhar maior importância. De facto, o futuro dos saberes e da investigação científica depende do cultivo das ciências sociais e humanidades. Os Principia de Newton, Electricity de Franklin ou o Tratado de Química de Lavoisier foram a um tempo obras científicas e literárias – e são monumentos da cultura científica e das Humanidades. Longe de uma separação, há uma natural ligação. Condorcet defendeu a harmonização das artes com as ciências e Rousseau no célebre Discurso sobre as ciências e as artes afirmou que as ciências da natureza não poderiam separar-se das artes, sob pena de contribuírem para o atraso moral da humanidade. Quando F. R. Leaves respondeu a C. P. Snow, dizendo que o apelo deste para que os académicos da literatura se familiarizassem com a segunda lei da termodinâmica era um exemplo de diletantismo académico, não tinha razão, uma vez que a cultura científica tende a atenuar as fronteiras tradicionais entre o método explanatório das ciências naturais e o método interpretativo ou hermenêutico das ciências humanas. Do que se trata é de encontrar no diálogo científico novas pistas que permitam compreender melhor o mundo. Como tem defendido Martha Nussbaum, importa considerar o regresso à educação de valores, segundo um conhecimento não padronizado e uma visão transversal do saber assente num novo senso comum… É a democracia que está em causa, que exige a criação de uma cultura universal decente. Não se trata, pois, de fazer uma análise estática, dentro do pressuposto de que prevalecem os critérios tradicionais de permanência das circunstâncias conhecidas – “a universidade deve transmitir conhecimentos sólidos, competências sociais, culturais e técnicas robustas que permitam aos licenciados adaptar-se às transformações, e não a agir simplesmente como instituição que se adapta ao mercado” (p.55). Pico della Mirandola continua a ser o melhor esteio neste tema difícil das Humanidades. É necessário o diálogo de saberes e o fim do divórcio entre as duas culturas. Saber lidar com as leis da física, com os computadores, com as novas tecnologias, mas também com as artes tradicionais, será tão importante como conhecer o grego e o latim e ler os grandes textos e os grandes autores. Afinal, as Humanidades são “as guardiãs da república, fonte de memória nacional e vigor cívico, da compreensão cultural e comunicação, da realização individual e das ideias que partilhamos em comum” – como disse John Hennessy, presidente da Universidade de Stanford.
Guilherme d’Oliveira Martins
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