PARA LÁ DO MARÃO
Ao passarmos o Marão tivemos a sensação nítida de que atravessávamos a fronteira natural. Talvez por ser abril, e sem que pudéssemos suspeitar depois de uma viagem calma desde Lisboa, fomos atingidos por uma copiosa e intensa chuva, que se tornaria menos dura à medida que nos aproximámos de Bragança. É certo que já fiz antes o Marão com várias meteorologias e a diversas horas do dia e da noite, mas naquele início de tarde senti especialmente a separação entre o litoral e o interior, que Orlando Ribeiro considerou estrutural para se compreender o território português. Em Marânus lembramo-nos naturalmente de Teixeira de Pascoaes, mas em entrando no Reino Maravilhoso é Miguel Torga que nos guia, com as suas palavras propositadamente angulosas e incertas. «Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite». E se ia a convite de Graça Morais, ao encontro dos segredos da sua arte, voltei a compreender como as mulheres que pinta se misturam com a terra inóspita, revelando a dolorosa beleza da terra e a luta por ela e com ela. «Para cá do Marão, mandam os que cá estão!… Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?». É o Reino Maravilhoso que se nos apresenta. «Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas»…
VER E SENTIR A OBRA
Quando vemos e sentimos a obra de Graça Morais, compreendemos que tem tudo a ver com este Reino e as suas gentes, os seus dramas e também as suas esperanças. António Mega Ferreira, com rara premonição e arguto saber, falou-nos da obra artística de Graça referindo-a como «linhas de terra». A linha é um caminho, um sulco, o resultado da lavra, um sentido de orientação – elementos que singularizam a obra da artista. E a terra representa a ligação maternal às raízes, às origens, à Terra-Mãe. De facto, a originalidade da obra tem a ver com estes dois elementos, que constituem pontos de partida, referências, abertura de horizontes. A terra não é sinal de fechamento, mas de ampla compreensão cósmica. Para além da visibilidade imediata da obra de Graça Morais, o certo é que o tempo se encarregará de salientar e projetar a sua força original – compreendendo o seu humanismo universalista. A produção marca a cultura portuguesa contemporânea – a um tempo lírica e trágica, para usar a expressão de Unamuno, prolongada por Pascoaes e Torga.
João Pinharanda tem razão: «uma verdadeira obra de pesquisa. Não no puro sentido da pesquisa plástica, mas no sentido da procura de uma identificação cultural, pessoal e nacional». A mulher e a terra ganham especial sentido. É a afirmação do feminino na arte portuguesa – quer na eficácia do seu imaginário, quer na estratégia visual. Bernardo Pinto de Almeida entendeu-o melhor que ninguém. E ouvimos necessariamente Agustina, tão presente em diálogo com a obra de Graça. «Contudo era nas mulheres que as metamorfoses se manifestavam mais». Veja-se o belíssimo documentário de Joana Morais que tem por fantástico título «Na cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia». É o cerne da educação que aqui está, numa transmissão incomparável da aprendizagem. Daí, aliás, a originalíssima relação com a Literatura. Estamos por certo diante da pintora que melhor revela a vitalidade e a força do diálogo com a literatura portuguesa nos dias de hoje. Ana Marques Gastão e Raquel Henriques da Silva preparam neste domínio uma mostra que a muitos surpreenderá pela força e originalidade. Lembre-se a lista: «Ano de 1993» de José Saramago; «Nenhum Sítio» de Manuel António Pina; «Musa», «Orpheu e Eurydice» e «O Anjo de Timor» de Sophia de Mello Breyner Andresen; «Os Nós e os Laços» de António Alçada Batista; «Um Reino Maravilhoso» de Miguel Torga; «As Metamorfoses» de Agustina Bessa-Luís, com a natural presença de Ovídio; «O Príncipe Imperfeito» de Clara Pinto Correia; «Bestiário» de António Osório; e «Depois de Ver» de Pedro Tamen… O desenho, a pintura e as palavras ligam-se espontaneamente com uma especial determinação.
COMPREENSÃO DE PORTUGAL
A chave está em que Graça Morais compreende bem Portugal, ao ligar terra e mar, as mulheres e os homens. As mulheres na pintura da autora são a razão e a origem do mundo – no fundo, é a terra por contraponto ao mar (e os seus «olhos azuis»), entendido este como o horizonte dos homens, a sua ânsia e a sua perdição (como salienta Jorge da Costa). E assim chegamos às «Escolhidas», que Manuel Hermínio Monteiro define e Margarida Gil soube interpretar superiormente, em nome de tarefas cíclicas e ancestrais. «As Escolhidas são mulheres a quem a dureza do meio, a procriação, a manutenção do lume, a guarda da memória e as claraboias dos quartos obscuros outorgaram uma vida legível nos traços dos seus rostos (diz M.H.M.). Habitualmente falam pouco. Observam com perspicácia cada interlocutor. Raramente se queixam. Conhecem de cor os feitios de uma terra desde a geada dos lameiros à secura das searas»… E se falei do universalismo que perpassa na obra de Graça Morais, a verdade é que devemos ainda lembrar Cabo Verde, os crioulos e a gente que os fala. Lembrem-se as palavras: «Nhâ terra longe» ou «Sôdade» – além da presença de «Chuva braba» de Manuel Lopes. «Serei capaz de ter uma visão sincera desta natureza? Sente-se o espírito do lugar e a renovada capacidade de explorar a cabeça e o rosto humano. Cabo Verde foi oportunidade para, saindo das raízes, poder compreender melhor a essência das raízes de uma humanidade diversa e comum».
UMA TENSÃO ENTRE VIDA E MORTE
Em Graça Morais sente-se, desde os primeiros trabalhos, a tensão entre os dois grandes mitos existenciais: o amor e a morte, eros e tanatos, chegando gradualmente e com intensidade quase mítica ao sagrado. E o drama das mulheres ajuda especialmente. Peguemos nas «Geografias do Sagrado» – e no lado verdadeiro de quem regressa à terra e às suas raízes – e nos hábitos de comunhão das peregrinações e do encontro nas festas. As máscaras dos caretos significam a identidade e a diferença de quem protagoniza essa partilha de preocupações, angústias e esperanças. Há uma vivência, em imersão total, das tradições e dos costumes. Transcendência e imanência como que se fundem. Longe do folclorismo, a pintora procura o sentido do espírito, entrando no «mito dos rituais» (como bem viu Fernando Pernes). «As Escolhidas», «Metamorfoses», «Deusas da Montanha» encontram-se. E, como presenciámos, na representação no Museu Abade de Baçal, onde a pintura antiga dialoga com as representações de Graça Morais, há o testemunho enigmático das mulheres que vivem a dominação e, gradualmente, vão conquistando a autonomia e a emancipação… Estas são, afinal, «as linhas da terra»…
Guilherme d’Oliveira Martins