A Vida dos Livros

De 18 a 24 de junho de 2018

A atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva a Bettany Hughes leva-nos a lembrar uma das suas obras marcantes, «Helen of Troy» (Jonathan Cape, London, 2005; com tradução portuguesa, Alêtheia, 2008), que nos permite tomar contacto com as maiores qualidades desta historiadora que se tem afirmado na investigação e divulgação histórica e na defesa do conhecimento das raízes como base do património cultural como realidade viva.

PATRIMÓNIO REALIDADE VIVA

Para além do Património construído, importa valorizar a componente espiritual e humana, que nos permite assumir uma atitude humanista, assente na cultura como criação. A herança e a memória preservam-se estudando, cultivando, refletindo sobre a humanidade. Só assim compreenderemos como o tempo é fundamental na consolidação das instituições e de uma sociedade aberta. Referindo-nos à perspetiva de Bettany Hughes que parte de um exemplo concreto para nos relacionar com o Património Humano, Helena de Tróia faz parte da antiga mitologia grega. Filha de Zeus e de Leda, possuía a fama de ser a mulher mais bela do mundo. Diz a lenda que Teseu a chegou a raptar, mas ela foi libertada por Castor e Polux, seus irmãos. A conselho de Ulisses, o rei de Ítaca, veio a casar com Menelau, rei de Esparta, não sem que continuasse cobiçada por muitos pretendentes. Até que, numa viagem a Esparta, Páris, filho do rei Príamo, raptou Helena e levou-a para Tróia. Menelau, Agamemnon, rei de Micenas, e os seus aliados gregos, empreendem então uma poderosa ofensiva contra Tróia, com cerca de mil navios e a presença, segundo a lenda, dos mais valorosos guerreiros e estrategas de que se poderia dispor, no sentido de recuperar Helena, cuja defesa tinham jurado. Assim se dá início à longa guerra descrita em «A Ilíada» de Homero que durará, segundo a tradição, dez anos. Para a moderna historiografia essa memória relaciona-se com a expansão dos micénios para a Ásia Menor, região dominada pela presença dos hititas. Além de Homero, também Hesíodo e outros atores da cultura grega ocuparam-se de Helena de Tróia, como símbolo fundamental da cultura grega mais antiga – articulando os mitos sagrado, político e humano. Através da combinação de vestígios físicos, históricos e culturais que esta princesa da Idade do Bronze recente (1600-1050 a.C.) deixou na Grécia, no Norte de África e na Ásia menor, B.Hughes procura revelar, de modo brilhante, os factos e os mitos que rodeiam uma das figuras mais enigmáticas e famosas da história das civilizações mediterrânicas. A autora acredita que o mito de Helena tem como base uma personalidade que existiu de facto, assentando a sua identidade em três pilares, que correspondem a três arquétipos, que se anunciam no próprio título da obra: princesa, deusa e prostituta. Notam-se, assim, a legitimidade política, a maternidade sagrada e a fecundidade. Partindo da ideia de que Helena é uma personalidade que existiu, a escritora localiza o seu nascimento no Peloponeso, referindo que a efabulação mitológica decorre da cultura do Mundo Antigo, perante o evidente poder carismático da princesa. O tema do rapto traduz, por isso, um sintoma de uma forte e inequívoca ligação à tradição do politeísmo grego – sendo Helena considerada filha de Zeus e imortal. O mito torna-se, pois, compreensível pelo carácter excecional da figura. Deste modo, a obra revela as qualidades fundamentais da autora – estudiosa e divulgadora da cultura clássica, para se compreender melhor a importância das raízes históricas e o significado complexo e dinâmico do património cultural.

COMO DEFENDER O PATRIMÓNIO?

A melhor maneira de não deixar ao abandono o património é o seu conhecimento e o seu estudo. E, sem prejuízo, de poder haver dúvidas historiográficas sobre as pistas lançadas e as conclusões assumidas pela historiadora, a verdade é que, partindo de um período tão complexo e difícil, pleno de incertezas, desde a própria existência da guerra de Tróia até à complexidade das figuras míticas, estamos perante a consideração dos elementos conhecidos e disponíveis que constroem uma narrativa coerente, e pedagogicamente consistente, sobre as origens da Grécia Antiga. Os claros e escuros não impedem a procura de uma chave de leitura que permita associar os mitos e as realidades históricas, sendo que não podemos dispor de testemunhos seguros que façam luz sobre as naturais dúvidas que existem e a própria autora assume. Não há certezas, mas propostas com verosimilhança para responder à pergunta: quem foi Helena de Tróia como figura com existência e personalidade próprias. B. Hughes é ainda autora de «The Hemlock Cup: Socrates, Athens and the Search for the Good Life» (Uma Taça de Cicuta: Sócrates e a procura da Vida Boa) (2010), que fez parte da lista de bestsellers do The New York Times e foi finalista dos prémios da associação norte-americana de escritores. Em 2017 publicou, também com assinalável êxito, «Istambul: A Tale of Three Cities» (Istambul, Um Conto de Três Cidades), onde faz uma apaixonante viagem por Bizâncio, Constantinopla e Istambul e pelas suas três culturas, enfatizando o diálogo entre o Ocidente e o Oriente, em oito mil anos de História – desde o Neolítico e Antiguidade até hoje.

A HISTÓRIA CIÊNCIA DO FUTURO

Encontramos a noção de Património Cultural, como realidade humana, em toda a pujança – como fator de relacionamento e compreensão da complexidade e da diversidade. A historiadora é uma referência na comunicação respeitante à História antiga e medieval – com mais de 50 programas, em canais de rádio e televisão, como a BBC, ITV, Channel 4, Discovery, Canal História, National Geographic, além do sistema de televisão pública dos Estados Unidos, PBS. Bettany Hughes formou-se na Universidade de Oxford (St. Hilda College), especializou-se na Antiguidade e Idade Média, tendo sido investigadora no King’s College de Londres com tutoria no Institut of Continuing Education da Universidade de Cambridge – sendo convidada pelas principais instituições de ensino superior inglesas e norte-americanas para proferir conferências. A lista de temas que tem abordado é impressionante. A título de exemplo referimos: os egípcios, a verdadeira face de Nefertiti, o mistério de Tutankamon, engenharia no antigo Egipto, a história bíblica, a democracia ateniense, os espartanos, a ilha do Minotauro, a invasão romana da Grã-Bretanha, as origens do cristianismo, Alexandria, as maravilhas do mundo budista, o fim de Pompeia, até às figuras de Sócrates, Buda e Confúcio, bem como de Marx, Nietzsche e Freud… Estamos diante da consideração do Património Humano que nos permite compreender a importância do Património Cultural como realidade viva.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Subscreva a nossa newsletter