PERSONALIDADE DE MÚLTIPLAS VOCAÇÕES
António Pedro, cujo cinquentenário da morte agora passa, foi uma personalidade de múltiplas vocações. Para a minha geração foi um homem de teatro e um interrogador de caminhos de vanguarda inéditos e precursores. Um dia disse sobre o seu código genético: «Esta metade galaico-minhota e irlando-galesa do meu sangue fez-me gostar de gaitas de foles, de instrumentos de percussão e da conquista do impossível. Como meus tetravós celtas, se eu pudesse, atiraria setas ao sol. Minha família, no entanto, é de gente burguesa e bem pensante». Isto significa que António Pedro se sentia muito português, ligado a esse misterioso fundo céltico, que é sinal distintivo do Portugal matricial. Aliás, falando de raízes, temos de referir a sua ligação a Moledo e um amor especial ao Norte: «Este Moledo do meu encanto, onde tinha uma casa e onde, desde a infância, vinha passar, sempre que podia, alguns meses por ano (…) De Moledo descobri o Porto. Foi uma grande descoberta. O Porto é uma cidade de província, mas de uma província que pertence à Europa»… E, se é certo que essas raízes eram muito marcadas, a verdade é que a ligação cabo-verdiana torna-o uma personalidade ligada ainda à viagem e à descoberta. Não por acaso, os estudiosos da sua vida e da sua personalidade falam do seu pendor experimentalista e da tendência para testar permanentemente a força da imaginação. «Ser é mudar. Mudar, como morrer, uma perpétua sequência de metamorfoses»… A ideia de vanguardas pensantes entusiasmava-o. Vemo-lo começar com os nacional-sindicalistas na «Ação Nacional», com Rolão Preto, mas, pelo inconformismo, depressa está em choque com o Estado Novo, partindo para Paris (1934-35), onde vai ao encontro do mais moderno e experimental se faz na Europa. Realiza na escultura ou na instalação o curioso «Aparelho Físico de Meditação», associa-se aos dimensionalistas, publica poemas visuais (15 Poèmes au Hasard) e em 1935, já em Lisboa, organiza na Galeria UP a primeira exposição de Maria Helena Vieira da Silva. Do dimensionalismo dirá: «a poesia precisa casa vez menos de palavras. A pintura precisa cada vez mais de poesia».
PULSÃO FUTURISTA
Personalidade fervilhante, sente em si uma pulsão futurista. Graças a si, começa a falar-se em Portugal do surrealismo. No fundo, António Pedro deseja que o espírito de rutura de «Orpheu» se renove em termos diferentes. Daí a proximidade e a distância relativamente a Fernando Pessoa… Em 1940 na Casa Repe (Lisboa) organiza uma Exposição Surrealista com António Dacosta e Pamela Boden. No início dos anos quarenta, visita o Brasil, onde tem contacto com os meios da criação artística. Em 1942 publica «Apenas uma Narrativa» – de que Jorge de Sena dirá ser «uma bela e prática novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua». E, olhando o criador e o artista como um todo, ainda Jorge de Sena afirma: «António Pedro trouxe a visão de um pintor imaginativo para quem a intensidade da expressão iguala a pura compreensão das formas». De facto, não podemos apreciar a força criadora deste autor, sem ligarmos a poesia, a literatura, o teatro e as artes plásticas. Por isso, o teatro experimental foi para ele fundamental, uma vez que é a arte onde tudo se liga: texto, diálogos, expressão corporal, apresentação plástica, cenários, marcações… Assim, e naturalmente, começa a interessar-se pelo teatro, pelo público, pela capacidade de encenar e de representar, de ser autor e actor. Torna-se jornalista no início de 40, funda a revista «Variante» e é chefe de redação do «Diário Popular». Parte para Londres, onde trabalha para a BBC e relaciona-se com o surrealismo britânico. Defende nas suas crónicas radiofónicas de Segunda-feira a democracia inglesa e a causa dos Aliados – o que o torna suspeito aos olhos de Salazar e do regime. Adolfo Casais Monteiro dedica-lhe o poema «Europa», ilustrado por António Dacosta, referência fundamental na defesa de uma paz europeia assente na liberdade e na democracia. Em 1945, quando regressa a Lisboa tem dissabores com a polícia política. Em 1947, é um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, com Alexandre O’Neill, Dacosta, Fernando Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto Franças e Vespeira, do qual se tornarão dissidentes: Mário Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa e Henrique Risques Pereira. «O que deles (dos surrealistas) me aproxima é o sonho, os dados irracionais como ponto de partida, e o encanto sobre todas as coisas de uma imaginação barroquisante, delirante se for preciso e possível, a única faculdade do espírito que, com certeza, só o homem possui à face da terra». Mais do que uma escola o que importava a António Pedro era uma atitude!
A PAIXÃO PELO TEATRO
E o teatro torna-se a sua verdadeira paixão. Se desilusões várias o levam a retirar-se para Moledo, onde se dedica à cerâmica, o certo é que o vírus teatral e dramático torna-se decisivo, levando-o à direção do Círculo de Cultura Teatral – Teatro Experimental do Porto (TEP), sob proposta de Alexandre Babo e Eugénio de Andrade. Durante oito anos estará à frente do TEP, numa experiência inolvidável. Ninguém pode deixar de reconhecer o extraordinário encenador, o pedagogo de exceção e o homem dos sete ofícios da cena teatral. Era um homem de teatro verdadeiramente completo. A encenação de «A Morte de um Caixeiro Viajante» de Miller é ainda hoje lembrada como um grande momento da história do teatro português. Na RTP, são célebres as suas charlas sobre teatro, numa linguagem acessível e nova, sem tiques eruditos. Como se se tratasse de temas fáceis e acessíveis, António Pedro falava da modernidade em termos tais que levavam naturalmente os mais jovens a entusiasmarem-se pela força emancipadora do teatro. São momentos únicos de televisão que marcaram pela paixão do teatro as novas gerações. Sendo sempre fiel a si mesmo e à sua independência de espírito, António Pedro singularizava-se pela inteligência fina e acutilante. Tendo querido levar à cena no TEP «A Casa de Bernarda Alba» de Lorca não conseguiu fazer demover a interdição da censura, só levantada mais tarde, com restrições, em especial pela proibição do cartaz da autoria de José Rodrigues. Adolfo Casais Monteiro disse de António Pedro o que não podemos esquecer: «foi na hora própria a voz de todos os portugueses que não esqueceram a sua condição de europeus e cidadãos do mundo».
Guilherme d’Oliveira Martins
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