A Vida dos Livros

De 18 a 24 de julho de 2016.

«Apenas uma Narrativa» (1942) de António Pedro (1909-1966) é um marco na cultura portuguesa, deixado por alguém que foi pioneiro nos caminhos surrealistas entre nós e que foi uma personalidade de influência decisiva na afirmação do teatro moderno.

PERSONALIDADE DE MÚLTIPLAS VOCAÇÕES

António Pedro, cujo cinquentenário da morte agora passa, foi uma personalidade de múltiplas vocações. Para a minha geração foi um homem de teatro e um interrogador de caminhos de vanguarda inéditos e precursores. Um dia disse sobre o seu código genético: «Esta metade galaico-minhota e irlando-galesa do meu sangue fez-me gostar de gaitas de foles, de instrumentos de percussão e da conquista do impossível. Como meus tetravós celtas, se eu pudesse, atiraria setas ao sol. Minha família, no entanto, é de gente burguesa e bem pensante». Isto significa que António Pedro se sentia muito português, ligado a esse misterioso fundo céltico, que é sinal distintivo do Portugal matricial. Aliás, falando de raízes, temos de referir a sua ligação a Moledo e um amor especial ao Norte: «Este Moledo do meu encanto, onde tinha uma casa e onde, desde a infância, vinha passar, sempre que podia, alguns meses por ano (…) De Moledo descobri o Porto. Foi uma grande descoberta. O Porto é uma cidade de província, mas de uma província que pertence à Europa»… E, se é certo que essas raízes eram muito marcadas, a verdade é que a ligação cabo-verdiana torna-o uma personalidade ligada ainda à viagem e à descoberta. Não por acaso, os estudiosos da sua vida e da sua personalidade falam do seu pendor experimentalista e da tendência para testar permanentemente a força da imaginação. «Ser é mudar. Mudar, como morrer, uma perpétua sequência de metamorfoses»… A ideia de vanguardas pensantes entusiasmava-o. Vemo-lo começar com os nacional-sindicalistas na «Ação Nacional», com Rolão Preto, mas, pelo inconformismo, depressa está em choque com o Estado Novo, partindo para Paris (1934-35), onde vai ao encontro do mais moderno e experimental se faz na Europa. Realiza na escultura ou na instalação o curioso «Aparelho Físico de Meditação», associa-se aos dimensionalistas, publica poemas visuais (15 Poèmes au Hasard) e em 1935, já em Lisboa, organiza na Galeria UP a primeira exposição de Maria Helena Vieira da Silva. Do dimensionalismo dirá: «a poesia precisa casa vez menos de palavras. A pintura precisa cada vez mais de poesia».

PULSÃO FUTURISTA

Personalidade fervilhante, sente em si uma pulsão futurista. Graças a si, começa a falar-se em Portugal do surrealismo. No fundo, António Pedro deseja que o espírito de rutura de «Orpheu» se renove em termos diferentes. Daí a proximidade e a distância relativamente a Fernando Pessoa… Em 1940 na Casa Repe (Lisboa) organiza uma Exposição Surrealista com António Dacosta e Pamela Boden. No início dos anos quarenta, visita o Brasil, onde tem contacto com os meios da criação artística. Em 1942 publica «Apenas uma Narrativa» – de que Jorge de Sena dirá ser «uma bela e prática novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua». E, olhando o criador e o artista como um todo, ainda Jorge de Sena afirma: «António Pedro trouxe a visão de um pintor imaginativo para quem a intensidade da expressão iguala a pura compreensão das formas». De facto, não podemos apreciar a força criadora deste autor, sem ligarmos a poesia, a literatura, o teatro e as artes plásticas. Por isso, o teatro experimental foi para ele fundamental, uma vez que é a arte onde tudo se liga: texto, diálogos, expressão corporal, apresentação plástica, cenários, marcações… Assim, e naturalmente, começa a interessar-se pelo teatro, pelo público, pela capacidade de encenar e de representar, de ser autor e actor. Torna-se jornalista no início de 40, funda a revista «Variante» e é chefe de redação do «Diário Popular». Parte para Londres, onde trabalha para a BBC e relaciona-se com o surrealismo britânico. Defende nas suas crónicas radiofónicas de Segunda-feira a democracia inglesa e a causa dos Aliados – o que o torna suspeito aos olhos de Salazar e do regime. Adolfo Casais Monteiro dedica-lhe o poema «Europa», ilustrado por António Dacosta, referência fundamental na defesa de uma paz europeia assente na liberdade e na democracia. Em 1945, quando regressa a Lisboa tem dissabores com a polícia política. Em 1947, é um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, com Alexandre O’Neill, Dacosta, Fernando Azevedo, João Moniz Pereira, José-Augusto Franças e Vespeira, do qual se tornarão dissidentes: Mário Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa e Henrique Risques Pereira. «O que deles (dos surrealistas) me aproxima é o sonho, os dados irracionais como ponto de partida, e o encanto sobre todas as coisas de uma imaginação barroquisante, delirante se for preciso e possível, a única faculdade do espírito que, com certeza, só o homem possui à face da terra». Mais do que uma escola o que importava a António Pedro era uma atitude!

A PAIXÃO PELO TEATRO

E o teatro torna-se a sua verdadeira paixão. Se desilusões várias o levam a retirar-se para Moledo, onde se dedica à cerâmica, o certo é que o vírus teatral e dramático torna-se decisivo, levando-o à direção do Círculo de Cultura Teatral – Teatro Experimental do Porto (TEP), sob proposta de Alexandre Babo e Eugénio de Andrade. Durante oito anos estará à frente do TEP, numa experiência inolvidável. Ninguém pode deixar de reconhecer o extraordinário encenador, o pedagogo de exceção e o homem dos sete ofícios da cena teatral. Era um homem de teatro verdadeiramente completo. A encenação de «A Morte de um Caixeiro Viajante» de Miller é ainda hoje lembrada como um grande momento da história do teatro português. Na RTP, são célebres as suas charlas sobre teatro, numa linguagem acessível e nova, sem tiques eruditos. Como se se tratasse de temas fáceis e acessíveis, António Pedro falava da modernidade em termos tais que levavam naturalmente os mais jovens a entusiasmarem-se pela força emancipadora do teatro. São momentos únicos de televisão que marcaram pela paixão do teatro as novas gerações. Sendo sempre fiel a si mesmo e à sua independência de espírito, António Pedro singularizava-se pela inteligência fina e acutilante. Tendo querido levar à cena no TEP «A Casa de Bernarda Alba» de Lorca não conseguiu fazer demover a interdição da censura, só levantada mais tarde, com restrições, em especial pela proibição do cartaz da autoria de José Rodrigues. Adolfo Casais Monteiro disse de António Pedro o que não podemos esquecer: «foi na hora própria a voz de todos os portugueses que não esqueceram a sua condição de europeus e cidadãos do mundo».

Guilherme d’Oliveira Martins

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