A Vida dos Livros

de 17 a 23 de março 2014

“Por Tierras de Portugal – Un Viaje com Unamuno” de Agustin Remesal (La Raya Quebrada, 2014) é uma recriação, ancorada em testemunhos históricos coevos e na escrita do próprio D. Miguel de Unamuno, da relação do reitor de Salamanca com Portugal, feita de um modo tão especial que Teixeira de Pascoaes chegou a dizer se todos os espanhóis fossem como o escritor de “La Agonia del Cristianismo” isso tornar-se-ia perigoso para nós outros… 

UM ROTEIRO APAIXONANTE
Agustín Remesal é um experimentado jornalista, autor de obras importantes sobre a relação raiana luso-espanhola e correspondente estrangeiro na área política, com provas dadas e reconhecimento geral. Venceu em 2008 o Prémio Eduardo Lourenço, galardão máximo dos estudos ibéricos. Com esta obra, realizada no âmbito das comemorações dos 150 anos do nascimento de Miguel de Unamuno (que contará com a participação ativa do Centro Nacional de Cultura), o escritor assina um testemunho de grande interesse, que permite compreender um pouco melhor o amor de Unamuno para Portugal e os portugueses. Se a obra se lê com facilidade, pelos diálogos que procura recriar entre o escritor, a terra portuguesa e os seus amigos do ocidente peninsular, o certo é que também é uma excelente introdução à leitura direta da obra do mestre de Salamanca sobre Portugal. Nota-se que o autor desta obra percorreu cuidadosamente os lugares que descreve, conhecendo-os, possuindo um bom poder evocativo, pelos diálogos que recria. Estamos, assim, perante um roteiro geocultural, mais do que diante de uma análise do pensamento e das influências e reflexões do pensador, mas Remesal nunca pretendeu fazer mais do que fez, dando um pendor quase romanesco a esta sua obra. Daí aparecerem figuras contemporâneas, que Unamuno não poderia conhecer. Sabemos, porém, pelos ensaios do professor salmantino que o diálogo com os seus principais interlocutores portugueses abrangeu temas e preocupações mais amplas do que as relatadas à primeira vista. Trata-se de um roteiro apaixonante em que se sente uma ligação efetiva entre a natureza e um certo sentimento panteísta, por um lado, e uma procura das idiossincrasias próprias justificativas da autonomia de Portugal, por outro. Nesse sentido, o diálogo com Teixeira de Pascoaes, especialmente atento, procurando ser fiel, não só a Unamuno, mas também à importância da obra do escritor de Gatão. São dez os capítulos do percurso, o que nos permite sonhar como se estivéssemos a refazer esse misterioso percurso.. Tudo começa na linha férrea Salamanca – Barca d’Alva e na estação de Fregeneda, entretanto desativada. Depois, temos Coimbra, envolvendo os prazeres sensuais e uma noite de fado, ante o pórtico de Santa Cruz. Segue-se o Porto, onde o oceano começa, entre livros, galeões e gaivotas e a orelha esquerda do rio vinhateiro. Vem Amarante e o sossego do Tâmega, um doce retiro, o vale do vinho verde; e a recordação de um antepassado de Pascoaes, o bisavô, D. Joaquim Teixeira de Vasconcellos, comandante dos Dragões da Rainha, que mesmo morto (a lenda tornou-se avassaladora) sobre a sua montada, pôde reconquistar aos franceses o rincão ancestral da quinta familiar em chamas. Em Barca d’Alva encontramos deuses e cavadores na Quinta da Batoca, o porto e a terra dos Guerra Junqueiro. Braga é a cidade levítica, a harmonia antiga d cidade dos arcebispos, entre o funicular e o monte dos milagres. Lisboa, Alcobaça e Guarda são polos de uma viagem improvisada; entre os rios Alcoa e Baça, situa-se o panteão do amor português, sob a memória intensa e trágica de Inês e Pedro,  lugar dos monges de Cister e do amor à terra, Guarda ventosa e húmida e as Beiras, terras velhas de judeus sefarditas, reminiscência de terra prometida. Espinho é o passeio do Atlântico entre o amor e a morte, no encontro com Manuel Laranjeira, com as suas verdades e enganos, entre companhas e outros trabalhos do mar. «Em Portugal (dizia Laranjeira) o suicídio é o recurso nobre, uma espécie de redenção moral». As praias desertas da Figueira da Foz ilustram o longo verão que tem como pano de fundo uma terrível guerra, enquanto os mestres Joaquim de Carvalho e Eugénio de Castro contribuem para dar sentido filosófico, culto e poético a esse lugar atlântico. Por fim, uma viagem final a Lisboa, a convite de António Ferro, numa luzida embaixada de intelectuais europeus em 1935, Gabriela Mistral, Maeterlink, Maritain, Mauriac, Maeztu…, perante a incomodidade de um tempo em que a península ardia em febre, nas vésperas de uma grande tragédia.

“ESTA É A MINHA TERRA!”
A obra de reconstituição memorial merece ser lida de uma ponta à outra, e o leitor dileto e atento contará com o imenso prazer de se tornar testemunha privilegiada do contacto com figuras míticas. Miguel de Unamuno dialoga com Teixeira de Pascoaes: «D. Quixote e Jesus são parentes próximos, talvez irmãos; assim mostrou nos seus escritos. D. Quixote reinara no ocidente, Jesus no oriente. Oxalá que voltem a governar esta terra e que a dinastia saxónica dos traficantes se vá para sempre» – diz o português. E, sobre o suicídio, acrescenta: «A incompreensão da alma sai da nossa tristeza e conduz ao suicídio, esse é o extremo diabólico da saudade». E recorda o suicídio de um irmão seu, para evitar opróbrio de uma humilhação académica. Unamuno lembra ainda Camilo, Antero e Soares dos Reis, e até Alexandre Herculano. Mas o entusiamo do reitor de Salamanca atinge o “climax”, quando diz: «Admirei sempre a capacidade dos portugueses para absorver a paisagem que lhes anestesia a alma como um sedativo». E fala ainda do encontro entre o Marão e o Tâmega e grita: “Esta é a minha terra!”. E Pascoaes acrescenta: «A alma lusitana tem a sua origem na fusão dos antigos povos que habitaram a península e na fortaleza destas paisagens. É o fruto de um choque de contrastes entre o mourisco e o celta num bosque druida ou talvez num deserto maometano». E o basco retorque: “Portugal está unido a Espanha por espinhaços rochosos, mas Castela ossuda e austera é tudo menos um jardim, apesar dos grandes rios que atravessam e enlaçam os países da Ibéria. Estas paragens confundem-nos”. O celta e o mouro chocam-se. E Pascoaes diz a sua poesia: “Ó Serra das divinas madrugadas, / Das estrelas, das nuvens e do vento / E das águias enormes, chamuscadas / Do sol e dos relâmpagos vermelhos! / Ó trágico Marão…”. Há que ler Camões. “Creio que a alma lusitana tanto existe nos seus montes coroados de pinheiros, essas elegias vegetais que sobem até ao céu, como nos versos oceânicos de “Os Lusíadas”. A história de Portugal é uma tragédia erótico-marítima” (Unamuno).

UMA PAIXÃO ESPECIAL
O idílio não é de amor. É a própria natureza, entre o monte e o rio, o Marão e o Tâmega, que faz nascer os sentimentos íntimos das gentes na terra. É a montanha que sela a beleza do amor. Quase a terminar a rota, temos um guia sentimental de Lisboa, escrito num momento cheio de incertezas, que culminariam no triste episódio de 12 de outubro de 1936 no paraninfo de Salamanca, perante o grito «Abajo la Inteligencia! Viva la Muerte!» de Millán Astray, em que Unamuno respondeu como sumo-sacerdote de um Templo de Inteligência, pondo em xeque a declaração do militar. Ele não poderia ficar calado, e pôs em risco a sua vida. Morreria pouco depois, mas não poderemos esquecer essa sua capacidade, de no momento próprio, não deixar de dizer. «Portugal seria o meu outro lugar mais próximo, mas devo continuar na luta (dirá no cair do pano da obra, como fantasma presente). O afastamento pesa sempre como uma lousa sobre a vida, em qualquer paisagem. Conheci bem o desterro e o exílio. A marca dos desterrados é a resignação. Só fogem os pessimistas. Não, nunca fugirei»… Mas o que fica aqui neste guia é que «quando o viajante deve deixar Lisboa, sente sempre amargor nos lábios e névoa no coração»…

Guilherme d’Oliveira Martins

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