A Vida dos Livros

De 16 a 22 de novembro de 2015

Assinada em Faro há dez anos, a Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea merece uma especial atenção, exigindo-se um esforço especial de cooperação entre instituições académicas e científicas, da sociedade e da economia, públicas e privadas, de modo a preservar o legado das gerações que nos antecederam e a transmiti-lo de modo fiel e enriquecido a quem nos suceder.

LEMBRAR A CONVENÇÃO DE FARO
Na comemoração dos dez anos da Convenção de Faro, a Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea, que teve lugar no Teatro das Figuras, na cidade de Faro, a 27 de outubro, foi possível, com o Município da capital algarvia e a Universidade do Algarve, pôr a tónica na defesa e salvaguarda da memória histórica e cultural, encarada como realidade dinâmica, como ponte entre o que recebemos das gerações passadas e o que construímos hoje no sentido de valorizar e proteger tal acervo. Lídia Jorge assinalou a grande importância da salvaguarda do património cultural como fator de paz e de reconhecimento da terra – referindo os casos da destruição de bens patrimoniais que prolongam o sacrifício bárbaro de vidas humanas, como tem acontecido no Iraque e na Síria… Palmira, como antes a ponte de Mostar, são exemplos do triunfo da barbárie perante a indiferença de muitos. A verdade é que o serviço e a proteção do património cultural são responsabilidades da cultura, da cidadania, do respeito e da paz – o que obriga a que haja uma visão de conjunto, complementaridades e autêntica cooperação. Infelizmente, aquilo a que assistimos não tem a ver com essas ideias, mas com indiferença e com leviandade. Todos puxam para seu lado, sem preocupação de criar catalisadores suscetíveis de proteger o património construído e imaterial, que temos o dever de legar nas melhores condições às gerações futuras.

EXEMPLOS DA NATUREZA

Há exemplos que nos são dados pela natureza e que constituem motivo sério de reflexão sobre as noções de património e de memória. As borboletas-monarca são alvo de atenções especiais dos cientistas, em virtude das misteriosas migrações que protagonizam de muitos milhares de quilómetros e há milhões de anos, no Atlântico e no Pacífico, especialmente nas Américas. Tendo uma vida curta, de 2 a 7 meses, esse tempo não permite a estas borboletas realizarem mais do que uma viagem em vida e num só sentido – demonstrando que a memória genética pode ser mais importante do que a aprendizagem. Um segundo exemplo tem a ver com as nossas observações do firmamento. Verificamos que muitos dos corpos celestes que ainda vislumbramos, há muito que estão extintos e no entanto ainda parecem ser nossos contemporâneos, em virtude da «lentidão» da velocidade da luz. Vemo-los, mas já não existem… O terceiro caso relaciona-se com os belos jacarandás que temos em Portugal e que têm uma fugaz floração, quase impercetível no outono europeu, uma vez que prevalece a lembrança genética da primavera brasileira. Afinal, as árvores têm memória. As três referências levam-nos a dar uma especial atenção às nossas responsabilidades ligadas ao tempo e ao que dele recebemos. No fundo, temos o dever de estar atentos ao valor dinâmico do que recebemos e do que legamos – seja memória genética, seja perceção virtual do passado, seja reminiscência histórica… Quando falamos de património cultural é de atualização criadora que cuidamos – pelo que não é apenas o passado que importa, mas sim uma responsabilidade presente que renova e atualiza a fidelidade à herança recebida. Quantas épocas diferentes, quantos estilos, quantas intervenções compõem o mosteiro dos Jerónimos? O mesmo se diga das grandes catedrais europeias, que foram sendo construídas em diversos momentos e em camadas arqueológicas e arquitetónicas múltiplas. Na catedral de Salamanca, entre os elementos decorativos foi acrescentada no século XX a representação de um pequeno astronauta, que não choca quem o descobre e que apenas demonstra que a História não se detém. Também no património imaterial, assistimos a atualizações, desde a gastronomia aos hábitos e costumes, não esquecendo a língua…


DIVERSIDADE DE CULTURAS E PERTENÇAS

A diversidade cultural e a pluralidade de pertenças obrigam, deste modo, a recusar as identidades fechadas, uma vez que estas só ganham pleno sentido quando abertas e disponíveis para dar e receber, e para assegurarem um permanente diálogo entre a tradição e a modernidade. Tradição significa transmissão, dádiva, entrega, gratuitidade. Modernidade representa o que em cada momento acrescentamos à herança recebida, como fator de liberdade e de emancipação, de autonomia e de criação. A novidade resulta sempre desse diálogo entre o que recebemos e o que criamos. E a cultura situa-se no ponto de encontro e de saída – não em confronto com a natureza, mas de complemento relativamente a ela. A terra, as casas, os lugares, as regiões, os povos, as nações têm um espírito, sempre feito de diferenças e de interdependência. Eis por que se tornou importante, em nome da dignidade da pessoa humana e da procura de um “património ou herança comum”, considerar, em ligação com o reconhecimento de um “código genético cultural”, os valores que o homem intui na sua experiência individual e social e que, depois, reelabora racionalmente, com ideias de proporção e de ordem, com vista à realização do bem comum, segundo o que exigem os valores da pessoa e a conservação e desenvolvimento da cultura. A Convenção de Faro insere-se na coerência do Conselho da Europa expressa nas Convenções de Granada de 1985, sobre o património arquitetónico, de La Valetta de 1992, sobre o património arqueológico, e de Florença de 2000, sobre a paisagem. Trata-se do culminar de uma reflexão levada a cabo desde os anos 70, em matéria de “conservação integrada” dos bens culturais. Sem retornar a mecanismos de proteção cobertos pelas Convenções precedentes, o texto de 2005 insiste nas funções e no papel do património: trata-se de passar do “como preservar o património e segundo que procedimento”, à questão do “porquê e para quem dar-lhe valor”. Se é importante preservar e saber como fazê-lo, tornou-se indispensável introduzir o elemento teleológico – por que razão e com que finalidade procedemos à preservação e à conservação, longe de uma perspetiva de antiquário ou de “bric-à-brac”, mas dando um valor social e histórico aos bens do património material e imaterial. Por outro lado, a noção de património comum (de várias culturas) está na encruzilhada e no ponto de encontro de várias pertenças. E, indo mais longe do que outros instrumentos e convenções, o texto visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. Um mesmo bem patrimonial pode estar ligado a tradições diferentes ou conflituais e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Caberá à sociedade encontrar o denominador comum, que permita evitar ser fonte de conflito.

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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