A Vida dos Livros

De 16 a 22 de fevereiro de 2015

Saudamos especialmente a chegada ao cardinalato de um Amigo do Centro Nacional de Cultura. D. Manuel Clemente é um antigo membro do CNC, mantendo-se nessa qualidade, apesar das grandes responsabilidades eclesiásticas assumidas nos últimos anos. Como historiador e defensor do património cultural, participou em, e apoiou múltiplas iniciativas do Centro, nunca tendo deixado de corresponder às solicitações que lhe foram feitas, em especial na defesa, divulgação e salvaguarda da História e do património religiosos, no que contou com o apoio inesquecível do saudoso D. Tomaz Nunes, que não esquecemos.

UM GRANDE JÚBILO
É um grande júbilo podermos contar com um novo Cardeal português na Cúria. E, como afirmou o Papa Francisco, não se trata de uma honra, mas de um reconhecimento e de uma responsabilidade. É esse serviço que devemos invocar, como sinal para o futuro. Num tempo de incertezas são os sinais de justiça que devem ser invocados. E é de bom augúrio que o novo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel, faça do seu programa pastoral uma caminhada sinodal, considerando a importância fundamental da colegialidade, da partilha de responsabilidades e da convergência comunitária. Esse é o caminho que tem de ser prosseguido com muita exigência.

PENSAR PORTUGAL E OS PORTUGUESES
Importa recordar o muito que o novo Cardeal tem pensado sobre Portugal e os portugueses. E é bom que oiçamos essa reflexão e que lhe possamos dar sequência. «O povo português naquilo que vai fazendo, que vai perdendo, que vai ganhando, mostra uma grande capacidade de se refazer» (diz D. Manuel). «Não digo que seja um caso único, mas é um caso muito interessante. Não é por recorte geográfico (não temos nenhum, estamos integrados nessa grande unidade que é a Península Ibérica). Nem por recorte étnico (que também não temos, somos uma grande mescla de aportações, daqui e dacolá). Do ponto de vista genético, não temos grande originalidade. Nem do ponto de vista dos recursos naturais (também não tivemos nada por aí além). Nada nos fadava para sermos uma entidade autónoma e tão resistente ao longo de tantos séculos». Nesta entrevista a Anabela Mota Ribeiro («Jornal de Negócios», 2012), D. Manuel Clemente faz como os homens da Igreja que se não limitam a revisitar fórmulas gerais e conhecidas, procurando tirar as lições necessárias da história imediata. Trata-se, sim, de nos refazermos a partir de quem somos realmente. Sentimos ecos das palavras dos Padres António Vieira e Manuel Bernardes, que se centraram na realidade de carne e osso, de quem somos, nem povo escolhido nem povo enjeitado, nascidos neste rincão ou espalhados no mundo, perdendo ou ganhando, vocacionados para as várias moradas que se nos vão oferecendo…

REENCONTRARMO-NOS FORA DAQUI…
«Temos uma nacionalidade assumida em termos de sentimentos básicos e de mitos coletivos. Facilmente nos reencontramos às vezes fora daqui». Quando encontramos alguém no estrangeiro, português, «imediatamente estamos a contar histórias comuns, como se fossemos da mesma família». E é este sentido de proximidade, de familiaridade, de convivialidade que devemos aprofundar, no sentido em que a nossa cultura se foi enriquecendo também pelas raízes cristãs. Espalhados pelo mundo, procuramos que a cultura da paz seja vivida de facto. Jaime Cortesão falou do papel fundamental do franciscanismo no nosso humanismo universalista. Agostinho da Silva invocou a nossa espiritualidade na utopia das festas do Espírito Santo e no culto da Senhora do Ó. Na magnífica tradução que Manuel de Lucena (que há pouco nos deixou) fez das «Moradas» de Santa Teresa de Jesus, encontram-se tantas realidades e preocupações que nos são familiares, explicando Teresa de Jesus «o que pensa que Nosso Senhor quer ao fazer à Alma tão altas mercês e como é preciso que Marta e Maria andem sempre juntas», sendo muito proveitoso». E em vendo a cultura contemporânea, percebemos bem como esta compreensão nos pode levar ao entendimento de quem somos na relação com os outros…

O QUE PORTUGAL TEM DE MELHOR…
D. Manuel Clemente tem insistido na necessidade de compreender que a suposta “capacidade de adaptação” dos portugueses não pode fazer-nos esquecer as nossas próprias raízes e especificidades. Uma coisa é a capacidade de nos enriquecermos em contacto com os outros, outra diferente é descaracterizarmo-nos… E recorda que “as leituras providencialistas da história portuguesa são tão antigas como a própria nacionalidade”. Basta percorrermos a nossa cronologia para vermos a ilustração disso: Ourique, Aljubarrota, o compromisso de Vila Viçosa depois de 1640, Fátima…E, sem abusivas intromissões ou confusões, do que se trata é de entender o seguinte: “quando a nossa consciência comunitária venceu em Aljubarrota as leis da sucessão senhorial e se manifestou na geografia da expansão e na arte dos painéis de S. Vicente, também a história de Portugal começou a buscar em Deus a chancela que o nosso primeiro rei procurara mais prosaicamente no reconhecimento papal” (v. «1810 – 1910 – 2010 – Datas e Desafios», Assírio, 2009).«O que Portugal tem de melhor são os portugueses. E isso não desilude. Não desiludiu na minha infância dos anos 50 e continua a não desiludir hoje. O português é um tipo excelente». Não. Não é para autocomprazimento que isto se lembra. É como sentido de responsabilidade e de caminho, com exigência e determinação. Nem melhores nem piores do que outros. Somos nós mesmos! Com limitações e tentações, com excessos e falhas. Santo António teve de ir pregar aos peixes, porque lhe virámos as costas. E, em momentos cruciais, lá fomos percebendo que era para nós que ele ia falando, cuidando das diferenças dos peixes, grandes e pequenos, dóceis ou agressivos, vorazes e vítimas… E voltando à relação entre Marta e Maria – é esse o grande apelo deste tempo e de sempre. Contemplação e ação! Reflexão e intervenção! Glória e Justiça! No momento em que D. Manuel recebe o barrete cardinalício e prossegue a sua caminhada pastoral, é tempo de saudar as dimensões cívica e religiosa… Como diz o Salmo 36, base do lema de D. Manuel: «in lumine tuo videbimus lumen».
Guilherme d’Oliveira Martins 
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