Há duzentos anos, em Königsberg, morria Immanuel Kant (1724-1804), o mais influente filósofo da modernidade. Em 200 anos o mundo viveu um tempo incomparável de grandes progressos científicos, mas se lermos Kant, verificamos que, em muitos aspectos, é como se o filósofo tivesse acabado de nos deixar. E isto é tanto mais evidente quanto é certo que, no actual debate europeu, muito do que discutimos foi reflectido no célebre ensaio “Para a Paz Perpétua” de 1795. Trata-se de tirar as consequências da anedota do estalajadeiro holandês, que tinha à porta de casa o lema “à paz perpétua”, sobre a imagem de um cemitério. Perante o caso, Kant recusava a fatalidade da guerra e propunha aos chefes de Estado um compromisso republicano. Hoje impõe-se na Europa a construção e o aprofundamento de uma República de Repúblicas livres. A lembrança da sucessão de tragédias ao longo do século XX leva a que tenhamos de reflectir sobre o modo de organizar a defesa dos interesses comuns. Trata-se de aplicar o “imperativo categórico” – age de modo que o teu comportamento possa tornar-se um princípio universal. O método é o dos passos seguros. O centro das preocupações é a salvaguarda da intangível dignidade da pessoa humana. Eis porque a construção europeia não pode ser uma obra burocrática e centralizada e incontrolável. É fundamental a concretização da cidadania, do envolvimento activo dos parlamentos nacionais, da clarificação das competências próprias da União e do controlo do princípio da subsidiariedade. A cidadania europeia tem de ser um factor de paz e de segurança, de desenvolvimento e de diversidade. A construção da “democracia de cidadãos” obriga-nos a olhar os avanços da Convenção. O que está em causa? A República europeia é uma coligação precária, ameaçada de divisão, dependente das vontades, da limitação do poder e dos equilíbrios possíveis, mas a única forma de garantir a paz e o respeito mútuo entre Estados e Povos soberanos. Percebamos quais os custos de recuarmos na concretização de uma Europa aberta e quais os perigos de não haver coesão social e territorial e cooperação para o desenvolvimento com os povos mais pobres que afluem ao nosso continente. Para Kant o direito das gentes deveria ser fundado numa ideia de “federalismo” de Estados livres. E assim o direito cosmopolítico teria de se adequar “às condições da hospitalidade universal”. Trata-se de aprofundar a ideia de uma “comunidade” que permita chegarmos ao ponto em que o ataque ao direito em um só lugar da terra seja sentido em todos. O “direito cosmopolita” deixaria de ser uma “representação fantasista e extravagante do direito”, para se tornar um complemento necessário do direito cívico e do direito das gentes, no sentido de “um direito público dos homens em geral”, orientado para a paz perpétua, não confundível com a paz dos cemitérios.
Guilherme d´Oliveira Martins