UM INTELECTUAL COMPLETO
João Lobo Antunes era um intelectual completo. Como cientista e médico teve o reconhecimento, enquanto verdadeiro mestre que foi. Como cidadão empenhou-se nas causas nobres da construção de uma sociedade melhor, capaz de compreender os limites e a imperfeição. Como ensaísta e homem de cultura deixa-nos uma obra única, centrada na procura serena, complexa e multifacetada da dignidade humana. Numa palavra, faz-nos muita falta. Deixa um lugar praticamente impossível de substituir. O humanista pôs em diálogo efetivo a cultura e a ciência, salientando que a criatividade e a inovação correspondem a processos paralelos e semelhantes no intelectual, no filósofo, no artista e no cientista. «Ouvir com Outros Olhos» é uma reunião inesquecível de reflexões de uma extraordinária qualidade ética e cultural. Não esqueço o encontro com Fernando Gil, a ilustrar essa proximidade. E não compreenderemos as virtualidades da investigação científica nos dias de hoje se não a ligarmos à criatividade humana. Num tempo de crises e incertezas, não é demais salientar a importância crucial do ato inovador, que exige um diálogo efetivo entre cultura e ciência. Pode dizer-se que ao lermos a obra fecunda do ensaísta, descobrimos o homem na sua integridade – o que permite compreendemos melhor o fenómeno extraordinário da criação. As mãos do cirurgião e as do escritor procuram, afinal e sempre, o milagre do ser. E podemos aplicar-lhe, o que o próprio disse de um seu próximo, por laços familiares e por convergência de afinidades científicas – Pedro Almeida Lima: «viveu uma vida cheia, com um estilo que muitos invejaram e que se não aprende e só grotescamente se imita, cumprindo a obrigação moral que a sua inteligência lhe criara, mas também deleitando-se fidalgamente, com aquilo que fazia». E, nessa recordação, acrescentava não haver porventura maior bem-aventurança – invocando, com legítimo orgulho, o facto de o mestre lhe ter declarado um dia, quando ele fez uma intervenção cirúrgica no caso de uma doença do ramo que bem conhecia, que isso lhe dava certa satisfação por ser prova cabal «de que (o João) tinha algo do seu sangue»… Pode dizer-se que há um elo de exemplo e de vocação que liga as duas personalidades, prolongado pela especial vocação pedagógica do mais jovem. Fazer escola é, no fundo, compreender que nada de verdadeiramente relevante pode escapar à necessidade de comunicar às novas gerações a atitude, os conhecimentos e a capacidade de compreender. Invocando a memória inesquecível de João Pedro Miller Guerra, João Lobo Antunes lembrou a vocação essencial da Universidade, não limitada a proporcionar uma cultura especializada, mas capaz de ter um sentido de estimular a inquietação do aperfeiçoamento espiritual. Daí a importância da Ética, como abertura de horizontes à inteligência, à sensibilidade e à formação do caráter. Por isso, afirmou: «Não há dúvida de que não é possível praticar um ensino esclarecido, eficaz, aprazível, se as relações entre professores e alunos não forem inspiradas pela confiança e respeito mútuos, não assentarem em bases de honestidade e franqueza». E, no entanto, nem sempre isso acontece, por antagonismos, desconfianças, animosidades, egoísmos e ambições desmedidas… A cada passo encontramos essas resistências, daí que o exemplo e a experiência sejam as melhores matérias-primas no que à Ética diz respeito. É neste sentido que falo de um intelectual completo – uma vez que nele encontramos, naturalmente, uma encruzilhada de preocupações – do rigor científico, da exigência técnica, do humanismo, dos valores vividos e enraizados, da sensibilidade das humanidades, como letras e artes e, sobretudo, como atenção a tudo o que é humano.
O FASCÍNIO DO PENSAMENTO
Percebe-se o fascínio que nele exerceram grandes mestres, como Juvenal Esteves ou Artur Torres Pereira… E ainda sobre Miller Guerra, disse-nos: «Tive o privilégio de beber da sua extraordinária cultura e de o ouvir dissertar sobre os diálogos de Platão, os sonetos de Antero, os romances de Proust e Dostoiewski ou os escritos de Teilhard de Chardin, preferência esta própria do católico, então progressista, que não enjeitava ser». Mas o fascínio transmitiu-se à capacidade extraordinária que tinha de partilhar a qualidade de grande leitor dos melhores romancistas norte-americanos – para além do sólido conhecimento dos clássicos – e de fazer disso alimento do convívio e dos melhores banquetes intelectuais. Fui testemunha direta dessa qualidade, num júri literário, no qual beneficiámos só fugazmente da sua participação, pelas razões que o vitimariam. Sentimos o seu método, a sua exigência, a sua sensibilidade e o conhecimento de causa. Participou de corpo inteiro nos nossos trabalhos, não enjeitando esforços – e pondo sobre a mesa toda a experiência de criterioso leitor. Mas também beneficiei do seu avisado conselho na Fundação Calouste Gulbenkian, semanas atrás, sempre segundo uma razão temperada pelo espírito e pela medida. É memorável o ensaio que escreveu sobre a «Morte de Ivan Iliitch» de Tolstoi – no qual se nos revela de pleno o homem das várias culturas – literária, científica, artística… E a novela do genial autor russo surge-nos decifrada de um modo amplo, em que os sentimentos humanos aparecem descritos nas situações limite… E compreendemos que «no fundo, quanto a sentimentos, alma e coração misturam-se, e Aristóteles tinha razão ao pensar que era no coração que o espírito tinha assento» – do mesmo modo que a coragem é outro atributo da alma… Faz pleno sentido a citação emblemática de Richard Feynman, no que podemos considerar uma chave para a compreensão do ato de ser e de conhecer: «todas as ciências, e não apenas as ciências, mas todo género de trabalho intelectual, são um exercício para ligar entre si diferentes hierarquias, para ligar a beleza à história, para ligar a história à psicologia humana, a psicologia humana ao trabalho do cérebro, o cérebro ao impulso nervoso, o impulso nervoso à química, e assim por diante, para baixo e para cima, em ambas as direções». Ainda sobre o exemplo sublime de Rita Levi-Montalcini, prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia de 1986, lembra-nos a ilustração fecunda da ideia de Valéry, segundo a qual o que conduz à descoberta científica «é pelo menos tão fascinante como a própria descoberta». Daí que a autobiografia da célebre investigadora tivesse como título «Elogio da Imperfeição». E aí encontramos uma história apaixonante de simplicidade, de entrega, de entusiasmo e de desencanto, de afetos, mas também de resistência à violência e ao ódio – de quem viveu a perseguição e o ostracismo. A vida e a obra de João Lobo Antunes representam um modo especial de ser, que nos remete para os grandes mestres das humanidades – como Montaigne. Quando lemos «Um Modo de Ser» (Gradiva, 1996) percebemos bem o sentido atual da afirmação do autor dos «Ensaios»: «Je suis moi-même la matière de mon livre…». Mas um eu atento à complexidade da vida que nos cerca…
Guilherme d’Oliveira Martins
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