A Vida dos Livros

De 14 a 20 de maio de 2018

A «História de Portugal» de Alexandre Herculano constitui ainda hoje obra de consideração obrigatória para compreender as origens da Nação. “Querer é quase sempre poder: o que é excessivamente raro é querer”. Com esta afirmação o historiador responde a muitos dos que consideram o primado da liberdade crítica como um não querer.

UMA POLÉMICA CIVILIZADA

Sabemos como o autor de Eurico se demarcou das novas gerações que se lhe seguiram, em especial da que se afirmou nas Conferências Democráticas pela evolução e pela igualdade. Conhecemos os termos da polémica civilizada, mas claríssima, que travou com Oliveira Martins (sob o olhar atento de Antero), em que deixou muito clara a sua atitude essencial relativamente ao primado da liberdade política, económica e cultural. De qualquer modo, se há uma marca própria na atitude de Herculano, ela corresponde à afirmação da liberdade como um fator necessário de afirmação de vontade. Liberdade e não querer são assim antagónicos e contraditórios, na perspetiva herculaniana. E aí os detratores do velho historiador viram uma contradição insanável, entre o distanciamento na intervenção e a retidão quase profética na ética. Nesse sentido, a partir de Kant, aproximou-se de Montesquieu e de Tocqueville, numa demarcação evidente em relação a Rousseau. Não é a liberdade do bom selvagem que Herculano invoca, mas a articulação de vários poderes, a sua autolimitação e a consideração da cidadania, como distinta de uma “vontade geral”, abstrata ou uniformizadora, e enquanto concretização de instituições livres, capazes de assegurarem uma mediação eficaz e legitimadora. Os fundamentos medievais das instituições animaram, de facto, a sua investigação histórica, com especial ênfase para o municipalismo, o que motivou críticas à historiografia moderna. O certo é que, para Herculano, o bem comum resulta de uma mediação, capaz de tornar a vontade algo de positivo, com vista a realizar desígnios comuns e a contrariar qualquer ilusão onírica. Daí a sua interpretação da “História de Portugal” como uma afirmação de vontade – sem esquecer, contudo, um certo “espírito público”, a animar a causa da independência. Apesar das diferenças, o certo é que há uma óbvia convergência entre as linhas emancipadoras dos primeiros românticos, Garrett e Herculano, e os desígnios da geração de Antero, Eça e Oliveira Martins. E sobretudo verifica-se uma certa confluência crítica sobre a degenerescência das instituições liberais, com aceitação por Herculano de algumas soluções sociais visando combater as injustiças (a enfiteuse, as caixas económicas, o crédito cooperativo)… Não por acaso, José-Augusto França prolonga a sua análise do Romantismo português até às repercussões ocorridas quase no fim do século: “1835 (ou 1834), pax liberalis, é uma data indiscutível: marca o começo do processo romântico nacional, na sua fase de instauração. 1880 situa-se no fim deste mesmo processo, no momento em que se caracteriza uma viragem da sociedade portuguesa e onde, sobretudo, esta sociedade toma consciência dos seus próprios valores – e da sua própria falência”.

O ESTADO COMO GÉNESE DA NAÇÃO

A consideração da vontade criadora do Estado e em consequência a génese da Nação no século XII português põe a tónica na convergência de fatores orgânicos e históricos que permitiram a origem de Portugal – “nascido no século XII em um ângulo da Galiza, constituído sem atenção às divisões políticas anteriores, dilatando-se pelo território do Gharb sarraceno, e buscando até (…) aumentar a sua população com as colónias trazidas de além dos Pirenéus, é uma nação inteiramente moderna”. A sua história própria “é assaz honrada e ilustre sem essas vaidades estranhas que estão longe de terem o valor que se lhes atribui”… Herculano falava das invocações de Viriato, de Sertório e dos lusitanos – sobretudo referidas a partir do século XV, fruto de um modismo clássico. No entanto, não há um nexo de continuidade entre a resistência à invasão romana e os povos que formaram o reino de Portugal. A nova monarquia compôs-se, digamos assim, de duas componentes, da fisiologia e da fisionomia da sociedade, enquanto do outro lado “impôs, vencedora, os seus próprios caracteres, posto que, como devia acontecer, dele recebesse modificações orgânicas”. E assim, como é fácil de compreender, a cultura do ocidente peninsular construiu-se em dois movimentos, de norte para sul e de sul para norte. A presença dos barões de Entre-Douro-e-Minho, que apoiaram Afonso Henriques, vai completar-se, a partir de Coimbra, por uma aliança muito profícua com os municípios moçárabes. Daí a construção da língua portuguesa, a partir da convergência de diversos dialetos, em que a Península Ibérica foi sempre fértil – que culminou na uniformização do idioma, com pequenas diferenças de pronúncia ou terminologia (com a exceção do mirandês), em virtude da mobilidade interna e da centralização. Herculano pôs, deste modo, a tónica na vontade, a que se somou o fator unificador da costa marítima – que reforçou o carácter atlântico de Portugal, por contraponto à continentalidade da Espanha, com a centralidade de Leão e Castela a ter de se virar para oriente (Aragão e Navarra), já que não se concretizou a ligação ocidental, com os funestos desaparecimentos do filho de D. João II, Príncipe D. Afonso, e do filho de D. Manuel, Miguel da Paz, simbolicamente sepultado em Granada com seus avós, os Reis Católicos.

A TÓNICA NA ÉTICA CÍVICA

Herculano põe a tónica na ação animada pela ética cívica. Assim se explica o interesse dos jovens de 1870. Como afirma Fernando Catroga: “o velho soldado liberal” interessa a Oliveira Martins, “desde cedo, não só como historiador (…) e como reformador social, mas também como modelo de virtudes cívicas. É que, para ele, o dissídio herculaniano não encerrava uma lição negativista. Bem pelo contrário, o seu magistério, antes e depois de ‘Vale de Lobos’, surgia-lhe como um símbolo de luta pela subordinação da política à moral, como um protesto rico de significação social” (“Ética e Sociocracia – O exemplo de Herculano na geração de 70”, in “Studium Generale”, nº 4, Porto, 1982). Aqui está porventura a chave que liga uma tradição de pensamento que vem de Garrett e Herculano, passa pela Geração de 70 e chega, nos nossos dias, a Eduardo Lourenço. E Catroga, ao falar de Oliveira Martins (de quem o autor de O Labirinto da Saudade se aproxima), ainda refere uma “propensão sociologista – corrigida pela sobredeterminação ética – e o seu apego às questões práticas da vida” que não bloquearam “a sua adesão à gesta individual de Herculano, a qual acabará por emergir como critério aferidor do sentido da sua própria ação como homem público”. Afinal, o que articula estas perspetivas, diversas mas complementares, não é qualquer negativismo ou ausência, mas uma visão crítica dos mitos como modo de emancipação – nunca como aceitação de qualquer fatalismo, ou acomodação à inexistência de vontade. “Somos porque queremos” – repetirá Herculano e com ele os seus seguidores, animados pela verve crítica, capaz de alimentar fecundamente a vontade.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Subscreva a nossa newsletter