A Vida dos Livros

De 14 a 20 de dezembro de 2015

«Veneza», versão de Antero de Quental, com organização, introdução e notas de Andrea Ragusa (Pianola 10, 2015), é um pequeno livro delicioso em que o grande poeta de «Sonetos» nos dá a sua versão sobre textos de divulgação a propósito da República Sereníssima veneziana.

A EUROPA PITORESCA

No ano da ida para Vila do Conde, em 1881, Antero de Quental redigia textos para o primeiro volume de «A Europa Pitoresca», obra que iria ser editada em Paris, por iniciativa de Salomão Sáragga. Os temas do poeta eram Normandia e Bretanha, Casas Nobres Inglesas e Veneza. Tratava-se de pôr em português o livro «Picturesque Europe», publicado em Londres em cinco volumes, entre 1875 e 1878. A incumbência não era traduzir os textos, mas fazer uma versão própria, que procurasse seguir o original, dando corpo a um conjunto profusamente ilustrado. Andrea Ragusa acaba de publicar o texto sobre «Veneza» (Pianola 10, 2015), fazendo luz sobre várias interpretações que havia relativamente a este inesperado texto anteriano. Contrariamente ao que se disse não estamos perante um texto original do poeta, mas sim diante de uma recriação, constituída por traduções do texto de Thomas George Bonney, inserido na obra londrina, e de «Voyage en Italie», de Hippolyte Taine, bem como de um conjunto de diversos textos da própria autoria anteriana. Bonney (e Ruskin) constitui a base para as descrições das obras de arte, itinerários, paisagens, canais, gôndolas e outras particularidades, enquanto Taine é o cicerone para a dimensão humana da arte e para a visão histórica da mítica cidade. É, aliás, a propósito do autor francês que Antero mais facilmente se espraia nas considerações próprias que enriquecem a prosa. O pequeno livro agora dado à estampa (com o texto de Antero e o original de Bonney) é uma preciosidade, menos pela originalidade ou pela importância crucial no contexto da obra riquíssima de Antero de Quental, mas porque nos revela uma faceta inesperada do poeta, que confirma o que Andrea Ragusa nos diz: «Diga-se de passagem que a literatura de viagens foi das poucas diversões que o seu estado de saúde lhe permitia no período da “crise pessimista” – isto é, de 1874 até cerca de 1881 – como o próprio Antero afirmava numa carta enviada ao amigo Batalha Reis: “(…) o que leio é meramente uma distração: viagens, história, narrativa e nada mais”». Ora, além do mais, Antero tinha um especial fascínio pela cidade de Veneza, já evidente na versão portuguesa do conto de Edgar Allan Poe, «The Assignation», publicado em 1864 no «Século XIX» de Penafiel, e passado na cidade dos Doges, cuja descrição é especialmente cuidada pelo poeta. O mais interessante nestas incursões no campo da tradução é o facto de nos encontramos perante recriações, onde a imaginação supera muitas vezes o respeito da letra original. E é o próprio Antero que nos explica esse processo. «Tradução é mais que transplantação (dizia em maio de 1861 no ensaio «Sobre as Traduções»). Tome-se a planta no seu clima, sob o seu céu e para céu e clima estranhos a levem; anime-se, afague-se, trate-se com amor, que pode viver, talvez florir e dar fruto. É o mesmo género, a mesma família, o mesmo indivíduo? O mesmo que era ou teria sido se de lá o não tirassem – a mil léguas, no solo aonde o Senhor lhe deixara cair a semente? Já não. Ora isto é transplantação».

HARMONIA GRACIOSÍSSIMA
Mas o que se significa recusar a mera «transplantação»? Trata-se de definir os traços essenciais e colocar o novo texto de acordo com o que se pretende junto do público a que o mesmo se destina. De facto, Salomão Sáragga pretende apresentar a obra aos leitores portugueses, inspirando-se na obra original, mas revivificando-a, o que justifica o convite a autores com pensamento próprio e que não deixam de acrescentar o seu ponto de vista. Além do mais, Fidelino de Figueiredo lembrou que «Antero desamou sempre a descrição plástica, não sentia a pintura, não amava a paisagem natural como beleza em si…». Significará isso que Antero ao seguir as descrições originais é menos fiel a si mesmo? Não parece. Do que se trata é de seguir o texto base, segundo o objetivo geral da obra. Daí que a recriação, seguindo o essencial do autor original, procede a uma recriação, que visa garantir que exista mais do que mera transplantação. «Veneza, apesar de decadente é ainda bela – talvez a mais bela entre todas as cidades da Europa meridional. É seguramente, entre todas elas, a mais pitoresca, a mais original e a mais plácida, daquela placidez nobre a que os italianos chamam “soave austero”». Nesta perspetiva, Antero, mais do que a descrição plástica, procede a uma consideração intelectual – baseada na coexistência entre ocidente e oriente, entre latino e bizantino. «Harmonia graciosíssima», eis o que Antero realça em Veneza, como «terra preferida pelos artistas, pelos poetas, pelos cismadores amigos de um silêncio cheio de imagens e pensamentos». Que é Veneza senão um «mediador ativo e inteligente entre civilizações diversas e hostis, entre o mundo latino e o bizantino, primeiro, depois entre o mundo cristão e muçulmano»? Afinal «Veneza tomou de uns e de outros, apropriou-se por uma lenta e insensível infiltração e como que assimilou esses génios diversos e com eles compôs o seu, já na política, já na religião, já na arte».

EM BUSCA DA ORIGINALIDADE
Para Antero de Quental, no fundo, a tradução seria «a pedra de toque do estilo». Isso é especialmente evidente com Taine – o viajante atento e disponível para refletir sobre o que vê e sente. Daí o poeta seguir fielmente «Voyage en Italie», acrescentando – «o leitor não nos perdoaria a impertinência, se, depois destas páginas realmente eloquentes tentássemos ainda acrescentar alguma coisa a respeito de São Marcos». O poeta português prefere a reflexão e a interrogação às tiradas sentimentais. Enquanto Bonney se despede da Cidade Sereníssima por uma imagem saudosa e impressionista, Antero não descreve nem o pôr-do-sol nem os barcos a passarem a brisa da tarde, preferindo uma despedida em tom interrogativo e sombrio. «Saiamos de Veneza com esta impressão última, a impressão dos túmulos, que é austera mas salutar. Em Veneza tudo fala do passado, por conseguinte da morte. E o que é a história, essa agitação de efémeros, durante um momento, entre duas eternidades, mais do que o proémio da morte de uma necrópole sucessiva?». E Andrea Ragusa fala de uma coincidência, quase ironia do destino: o facto de uma parte do espólio de Antero de Quental estar na Biblioteca Marciana de Veneza, incluindo o manuscrito «A Poesia na Atualidade». A presença na cidade onde confluem múltiplas vias obriga ao entendimento entre a criação e a existência, entre a vida e a morte (como nos acontecimentos relatados por Thomas Mann, em «A Morte em Veneza»). E compreendendo bem o que significa o Mediterrâneo, na cidade de Othelo, Antero de Quental não deixa de lembrar a paradoxal força de uma cidade plena de mistérios e contradições: sendo afinal, a verdadeira originalidade de Veneza: «criar alguma coisa nova e imprevista com elementos anteriores e conhecidos».  

Guilherme d’Oliveira Martins
Subscreva a nossa newsletter