ROTEIROS DE PATRIMÓNIO VIVO
Com o Ano Europeu do Património Cultural (2018) já no horizonte, devemos perguntar o que será essencial para que esta celebração se não fique pelo mero formalismo de uma festa. Naturalmente que é importante que os especialistas se encontrem e aprofundem as suas reflexões ou estudos, mas urge lançar pistas novas e fecundas que ponham a defesa e salvaguarda do património cultural na ordem do dia. E as escolas devem ser chamadas à primeira linha da ação. Como impedir que a memória seja votada ao abandono? Como conhecer melhor a História? Como saber de onde vimos, onde estamos, para onde vamos? Como dar valor ao que recebemos dos nossos antepassados? Como tornar a memória um fator de melhor aprendizagem? Como transformar a informação em conhecimento? Mais do que fogos-de-artifício ou ambiciosos e estimáveis programas, do que precisamos é de conhecimento e de motivação. Como Anselmo Borges dizia, há dias, em Santarém, na Fundação Passos Canavarro, temos de saber ler e de ganhar o hábito de ler – em vez da superficialidade dos efeitos especiais das novas tecnologias. Saber ler é saber refletir, pensar, repensar – não esquecendo que a educação se faz olhos nos olhos, a conversar, a dialogar, a conhecer, a transmitir e a trocar. E não se interprete mal, o erro não está nas tecnologias, que são instrumentos, belíssimos quando ao serviço de boas ideias, mas na falta de sentido crítico e de capacidade criadora. A ciência contribui para avançarmos no conhecimento e na compreensão das coisas e do mundo. As técnicas e as tecnologias completam-se e complementam-se – coexistindo umas com as outras ou até substituindo-se, no entanto não podemos confundir pessoas e robôs. Precisamos de voltar a ouvir T. S. Elliot quando nos diz: “Qual é o conhecimento que perdemos na informação e qual a sabedoria que perdemos no conhecimento”.
DE PORTAS ABERTAS
A experiência das Jornadas Europeias do Património, promovidas pelo Conselho da Europa, com o apoio da Comissão Europeia, nasceu em França nas Jornadas Portas Abertas, em 1984, tendo evoluído, depois de diversos países terem adotado iniciativas semelhantes, em 1991, para o modelo atual. Aí esteve Helena Vaz da Silva. Foi a experiência inovadora das Jornadas que levou à necessidade da aprovação da Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea (2005), assinada na cidade de Faro. A concentração no início do Outono de cada ano de eventos correspondentes a uma chamada de atenção para o Património Cultural, material e imaterial, monumentos, sítios, museus, paisagens, tradições, costumes e idiomas, constitui um modo de mobilizar a atenção e o cuidado dos cidadãos para a herança e a memória. No entanto, o culto do património cultural obriga a tornar essa preocupação permanente, aberta e prospetiva – e não momentânea, fechada e retrospetiva. Daí que o Ano Europeu de 2018 deva constituir-se numa chamada de atenção para as políticas públicas de cultura – que têm de articular a proteção do património e a criação cultural contemporânea, em nome da coerência e da qualidade, da liberdade e da inovação. E quanto à identidade, estamos perante o velho paradoxo filosófico do Navio de Teseu, a embarcação que foi de Atenas a Creta para pagar o tributo pela morte de Androgeu, filho de Minos… Depois do gesto heroico de Teseu os atenienses preservaram o Navio mítico, que ia sendo reparado e cujas madeiras iam sendo substituídas. E surgiu a pergunta: qual o verdadeiro navio, o que está renovado ou os seus despojos? Naturalmente, como disse Leibniz, o que importa é a identidade que prevalece – o navio renovado e não o que restou do primitivo… Como o Navio de Teseu, o património e as identidades culturais devem ser abertas para se enriquecerem – ao invés de qualquer fechamento, que perigosamente se traduz na destruição da memória.
LEMBRANDO ALMEIDA GARRETT
Em Santarém, no fim de uma tarde estranhamente quente do final de outubro, lembrámos, há dias, a célebre passagem de Almeida Garrett sobre o que hoje designamos como património cultural: “Entrámos a porta da antiga cidadela. – Que espantosa e desgraciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos: é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo, é ao pé da famosa e histórica Igreja de Santa Maria da Alcáçova. – Há de custar a achar em tanta confusão”… Garrett dá-nos conta da falta de cuidado que encontrou na histórica cidade, quando ia ao encontro de seu amigo Passos Manuel. Fala-nos de “pardieiros e entulhos”, que hoje felizmente deram lugar a uma cidade cuidada. E assim apelava a que não se deixasse ao abandono um legado histórico sagrado. Mas o grande mestre romântico faz o contraste entre as pedras mortas que encontrou decaídas, a honradez das pedras vivas e a formosura do panorama e da paisagem. “Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos”. Eram o “vale aprazível e sereno” e “o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem”… A seca prolongada deixou-nos agora severas preocupações, mas aquele glorioso momento foi mais forte que tudo, em nome de uma memória histórica inesquecível. Que é o património senão vida vivida? Vínhamos de Mangualde e de Vale da Estrela, do roteiro suculento do queijo da Serra da Estrela, no coração da Beira-Serra, com as ovelhas da raça Bordaleira ou Mondegueira, e ali estávamos com Pedro Canavarro a idear (com a presença silenciosa de Garrett e Passos) um roteiro da democracia neste rico Ribatejo – desde as Cortes de Santarém, como as de 1331, que ilustram os fatores democráticos na formação de Portugal (de Jaime Cortesão) e a aclamação em 1580 como rei de Portugal de D. António Prior do Crato (em tão boa hora agora lembrado por Manuel Alegre), até D. Pedro IV em vésperas de Évora-Monte, Sá da Bandeira, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Oliveira Marreca, Anselmo Braancamp Freire, António Ginestal Machado, José Relvas, Humberto Delgado, Salgueiro Maia… Para as escolas deve haver a determinação em criar para os mais jovens o gosto do estudo rigoroso, o culto e o interesse pelo património – seja o monumento antigo, seja a paisagem ou o jardim, seja o cuidado com o uso da língua materna, seja o trabalho do artesão, seja a qualidade na tradição gastronómica. E aqui está a ilustração de um modo como podemos cuidar do património – prevenindo-nos contra o descuidado, delineando e estudando caminhos que nos permitam conhecer, recordar, alertar e salvaguardar.
Guilherme d’Oliveira Martins
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