LEMBRAR A BATALHA DE LEPANTO
Quando entramos no Palácio dos Marqueses de Santa Cruz, na Calle de San Bernardino, em Madrid, próximo da Calle de la Princesa, deparamo-nos de um lado e de outro da escadaria principal com as imponentes lanternas decoradas com golfinhos tomadas à Armada turca na Batalha de Lepanto (1571) pelo Capitão das Galeras de Espanha, D. Álvaro Bazán y Guzmán, primeiro Marquês de Santa Cruz. Álvaro, o atual Marquês, velho amigo de combates pelo Património Cultural na Europa Nostra, com a hospitalidade de diplomata irrepreensível, faz questão de explicar com pormenor cada uma das preciosidades que aquela fantástica casa alberga. É um edifício típico do século XVIII, com fachada neoclássica, que corresponde à reunião de três solares e se tornou morada da família no último quartel do século XIX. Mais do que das coisas extraordinárias, a alma de uma casa alimenta-se sobretudo de memórias que várias gerações foram transmitindo. As dedicatórias dos Reis de Espanha à Marquesa D. Casilda, mãe do amigo que nos acolhe, falecida há poucos anos, são prova de admiração, afeto e de reconhecimento de um trabalho intenso e persistente na defesa de um património que ilustra a História de quase cinco séculos. Se a vitória de D. João de Áustria no Mediterrâneo é a referência maior e primeira, a verdade é que há muitos outros acontecimentos relevantes e que merecem atenção. Em Lepanto os portugueses estiveram ao lado dos vencedores. Mas a vitória não enfraqueceu, por diversas circunstâncias políticas e arranjos imediatos, o império turco – ao contrário do que esperariam os estrategas envolvidos. Foi, aliás, essa vitória que levou o nosso rei D. Sebastião a encontrar motivos fortes para aventurar-se, do modo imprudente como o fez, em Marrocos, numa intervenção que terminaria tragicamente em Alcácer Quibir. Com cuidado e a simpatia de uma cumplicidade sincera e antiga, o meu Amigo Álvaro recorda a vitória importante de seu antepassado nos mares dos Açores, à frente da Armada do nosso Filipe I, contra D. António, Prior do Crato, o derradeiro resistente na crise dinástica. Mas falamos ainda de como os Bazán conservam as chaves de Tunis, desde o tempo do pai do primeiro Marquês, aquando da conquista da cidade pelas tropas de Carlos V, em 1535. E não podemos deixar de referir o funesto acontecimento que vitimou ambos os povos peninsulares, aquando da «Invencível Armada».
AS CASAS TÊM ALMA
Entrando nas salas do Palácio, sentimos uma residência vivida, onde coexistem quadros e objetos históricos e arte contemporânea. Goya está bem presente nas paredes de San Bernardino – desde o retrato do segundo Duque de San Carlos, ministro de Estado de Fernando VII, a quem acompanhou no exílio, até à invocação de S. Francisco de Borja (o fidelíssimo servidor da Imperatriz Isabel de Portugal, de quem Sophia disse – «Nunca mais / A tua face será pura limpa e viva / Nem o teu andar como onda fugitiva / Se poderá nos passos do tempo tecer»), sem esquecer os ambientes silvestres de um «Baile no Campo» e de uma «Merenda». Em frente de um célebre retrato da Rainha Vitória Eugénia, com manto de arminho (1908), de Joaquin Sorolla, percebemos a força singular do grande pintor. Está aqui uma das obras-primas de um artista que os historiadores de arte continuam a considerar um exemplo referencial do naturalismo. Cada quadro de Brueghel ou de Van Dyck, de Lucas Jordan, de Carreño de Miranda ou de Madrazo, cada peça de porcelana, cada tapeçaria, cada medalhão tem uma história – que é apenas a ponta de um iceberg num acervo documental riquíssimo, que D. Casilda e seus filhos, a começar no meu amigo Álvaro Santa Cruz, sempre fizeram questão de preservar e de pôr ao serviço dos investigadores e ao acesso do público. Basta apenas recordar que, além da ação do velho Almirante, a família obteve o privilégio do exclusivo do serviço de correio com as Américas… Afinal, o património cultural não é algo de distante e inacessível, faz parte da vida.
DEFESA DO PATRIMÓNIO CULTURAL
A minha vinda a Madrid teve a ver com a realização do Congresso Europeu do Património Cultural, promovido pela Europa Nostra, aproveitando a celebração dos quarenta anos da «Hispania Nostra». Álvaro Santa Cruz tem sido um exemplo de persistência e de uma rara coerência no tocante à defesa do património histórico, não encarado como realidade estática e retrospetiva, mas como fator dinâmico – na linha do que hoje se encontra consagrado na Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (27.10.2005). Foi, por isso, justíssima a homenagem que foi prestada no Teatro da Zarzuela, onde lhe foi entregue a medalha de ouro da Europa Nostra por Plácido Domingo, presidente da instituição. Aliás, nessa ocasião, foram entregues os prémios europeus a dois projetos portugueses, que se destacaram pela grande qualidade, num certame em que houve uma afluência excecional de concorrentes de excecional qualidade. A Catedral e o Museu Diocesano de Santarém tiveram obras de conservação e restauro na fachada e interior, envolvendo pinturas, esculturas, objetos de culto e a consolidação arquitetónica – o que foi realizado com grande qualidade, devendo ser exemplo para situações semelhantes, designadamente para valorização da importante Rota das Catedrais. Deve, aliás, referir-se a obra sobre as «Catedrais Portuguesas», de grande qualidade, há pouco editada pelos Correios de Portugal. Foi ainda reconhecida a grande importância do projeto educativo sobre Desenvolvimento Sustentável no Planalto de Mourela, no Parque Nacional Peneda-Gerês. Para o júri: «este projeto é uma maravilhosa combinação de preservação do património material e imaterial, no âmbito da proteção do meio ambiente…». Estes dois prémios europeus para Portugal são motivo de regozijo, mas também de responsabilidade. E não poderemos esquecer ainda que a Europa Nostra está envolvida diretamente no incentivo a dois projetos de grande importância entre nós, no Convento de Jesus de Setúbal e nos Carrilhões do Convento de Mafra – tendo ainda recomendada a urgente recuperação do Palácio Valflores em Loures… O património cultural obriga a uma conceção que ligue a sua defesa e salvaguarda ao desenvolvimento humano. Cultura e economia ligam-se, assim, intimamente – percebendo-se que só a inovação no campo das ideias enriquece um entendimento dinâmico da criação de riqueza, não confundível com o curto prazo ou o imediatismo, com a indiferença e consumismo. Se a recente crise financeira deixou uma lição clara – essa foi a da necessidade de não confundir a ilusão sobre a riqueza com a exigência de ligar a capacidade de criação à satisfação das necessidades comuns. Como disse Octávio Paz: «hoje a cultura e as artes estão ameaçadas não por uma doutrina ou uma ideologia, mas por um processo económico fechado, sem rosto, sem alma e sem direção». Eis por que razão os exemplos são essenciais.
Guilherme d’Oliveira Martins
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