UM EXÍMIO MEMORIALISTA
Marcello Duarte Mathias é um exímio memorialista de longo curso. Os seus diários permitem-nos seguir uma análise tantas vezes inesperada ou até desconcertante do mundo, do tempo e das pessoas, para além da epiderme dos acontecimentos. Perante os sinais evidentes de uma crise perturbadora, Marcello aponta-nos sinais de uma sociedade frágil e por vezes incapaz de perceber os erros e as armadilhas que a afetam e tolhem. Apesar de dizer o contrário, a verdade é que o autor convive bem com a realidade de todos os dias. Pode ser que sinta assim, mas nós, os seus leitores, facilmente percebemos que a sua capacidade imaginativa permite a lucidez de olhar a história expurgada da força da ilusão. Afinal, a imaginação permite vermos as pessoas e os acontecimentos na sua justa expressão, sem grandiloquências nem efeitos da usura do elogio. «Já perdi a conta das vezes em que troquei a identidade e voltei a nascer, bem como daquelas em que morri por caminhos desviados! – nem sempre heroicamente, diga-se de passagem. (…) Somos dois afinal, eu e a minha imaginação, andamos sempre de braço dado, lado a lado. Reencontramo-nos a qualquer hora do dia ou da semana e a conversa nunca esmorece». E quando o memorialista assim procede facilmente somos confrontados com a apreciação da realidade e com a invocação de comentários e aforismos que nos permitem perceber melhor os factos para além das aparências. Cioran é lembrado: « Ce ne sont pas les pessimistes, ce sont les déçus qui écrivent bien»… E Teolinda Gersão : «Somos um país inventado pela televisão».
O QUE NÃO DEVE SER ESQUECIDO
A obra lê-se com prazer e nela encontramos justíssimas lembranças de quem não deve ser esquecido. Sentimos, com emoção, a lembrança de Ana Vicente, a propósito do seu livro «Memórias e outras histórias». A fé religiosa e a coerência moral nas atitudes, levam-nos a compreender que «a nossa salvação – essa espécie de lealdade para connosco, que deverás ser a primeira de todas elas! – é uma conquista de todos os dias». Na doença, como sempre na vida, a Ana foi exemplar. Também encontramos António Tabucchi, «um homem cuja bondade vivia em permanência ferida pelos males e horrores do mundo, com os quais não de conformava. Com os quais nunca verdadeiramente se conformou. Homem bom como aquele que, não sendo um ideólogo, tem dentro de si um eterno ideal de justiça, e que a essa aspiração, a esse código de honra, a essa dimensão moral se mantém fiel contra ventos e marés». Sobre Vasco Graça Moura, diz que «era uma grandiosa biblioteca que, de tão vasta e antiga, ninguém sabia ao certo a data da fundação. Nascera com ele? Ou precedera-o de alguns séculos?». Se remava contra a maré, acreditava que «a cultura é o outro nome da liberdade». Que melhor compreensão para o poeta e ensaísta que tão bem pôde entender Dante ou Camões… Quantos outros exemplos? Sobre António Pinto da França: «discorria com igual facilidade sobre o passado e o presente sem verdadeiramente os distinguir, como se correspondessem a uma mesma unidade de tempo». De Augusto de Athayde é lembrada a menina de seus olhos, o Jardim José do Canto em S. Miguel, «a pátria essencial das minhas raízes» (como dizia) – sendo o patriotismo «inerente à sua pessoa, onde entrava uma dose de misticismo e de nobreza de alma, e também de respeito pelo imaginário coletivo…». Mas fica-nos ainda na memória a invocação de Pedro Moura e Sá (1908-1959), autor de «Vida e Literatura», uma das obras de referência de Marcello. Praticamente desconhecido hoje, a obra singular que nos deixou é obrigatória. Leitor de Moravia, privou com Ortega y Gasset, Gabriel Marcel, Nemésio e Giraudoux. «Havia nele uma irradiação espiritual que corresponde ao melhor da tradição intelectual que corresponde ao melhor da tradição intelectual europeia. “Abria-se e, por isso, recebia” dirá de Carlos Queirós, companheiro de sempre. O mesmo se lhe aplica com igual equidade».
OLHAR EM VOLTA
O desenho das memórias permite-nos descobrir o que o escritor encontrou à sua volta. A propósito de Leonor Xavier, invoca o livro extraordinário «As Casas Contadas» e o seu lado tocante: «a dívida de gratidão ainda emocionada de quem não se esquece das seduções em tempos vividas. Todo o livro de memórias é uma ponta lançada entre várias margens». De Mia Couto, «a magia da escrita lembra o melhor da prosa brasileira: fácil, coleante, inventiva». Leitor incansável, o memorialista, a cada passo, regista o que de melhor encontra. De António Alçada Batista, diz que «a aventura eram os amigos, e a amizade um longo convívio permanentemente renovado, tão grande como a vida ou maior do que ela. Andou de início por Paris, como tantos da sua geração, e acabou por redescobrir Portugal ao descobrir… Cabo Verde e o Brasil». De Eduardo Lourenço, refere «uma saudável irreverência, uma ironia contundente e alegre, uma frescura de alma, se assim me posso exprimir, que pouco ou nada transparece naquilo que publica. E é pena. Eis um homem que ganha em ser conhecido!». Sem caráter sistemático, estes diversos exemplos permitem-nos perceber como a leitura deste «Diário da Abuxarda» nos revela a lembrança, paredes meias com a imaginação… Ao recordar diversos episódios de encontros inesperados de figuras marcantes, sente-se um especial prazer na lembrança do caso de Camus, autor da predileção de Marcello D. Mathias: «De passagem por Paris, em 1952, Hannah Arendt escreve ao marido: “Estive ontem com Camus: ele é, indiscutivelmente, o melhor homem (the best man) de França, no momento atual. Muito acima de qualquer intelectual”». Como e onde se encontraram? Poderia ser tema de um romance. Santo Agostinho era mestre de ambos, e possuíam «uma mesma autonomia mental». Já Stefan Zweig é-nos apresentado como um velho conhecido: «tenho a impressão de ter pessoalmente convivido com ele em sua casa, em Kapuzinerberg, nos arredores da sua cidade de Salzburgo…». É como se tivessem conversado, designadamente sobre «O Mundo de Ontem», em virtude de os mundos do memorialista serem todos de ontem… A propósito de Tony Judt, há a acusação da miopia dos intelectuais europeus depois de 1945, que passaram ao lado da Ideia Europeia, a «grande revolução ideológica desse tempo», com a exceção de Denis de Rougemont, que tinha a boa desculpa de ser suíço… O livro é um conjunto de preciosas recordações e considerações do escritor atento e do cidadão inquieto, num tempo de muitas incertezas e resgates. Fica uma última nota. Marcello refere-me como tendo-lhe eu apresentado pessoalmente Claudio Magris, o que até é verdade, mas há muitos anos foi M. D. M. que, no Aeroporto de Lisboa, me sugeriu a leitura urgente de «Danúbio». Aí se deu a autêntica apresentação, mas em sentido inverso… Fiquei-lhe eternamente grato!
Guilherme d’Oliveira Martins