O PRIMADO DO PENSAMENTO
«A velhice, diz-nos o mestre, torna-se um momento em que temos plena consciência de que o caminho não apenas não está cumprido, mas também não há mais tempo para cumpri-lo, e devemos renunciar á realização da última etapa». Assim, Bobbio trata do que Cícero designou “De Senectute”, sendo que o pensador romano morreu com apenas 63 anos, interrogando-se sobre o não ter sido homem de ação, ainda que sempre preocupado com a compreensão do agir na cidade e com o direito. E o que preocupa o filósofo é dar-nos ainda uma perspetiva sobre a relação entre o pensamento e a vida. O tempo atual está cheio de naturais incertezas. A vida política reserva-nos muitas surpresas. Quando em 1989, com a queda do muro de Berlim, muitos consideraram que se iniciava o tempo incontestável das liberdades e das sociedades abertas, estava-se longe de perceber que o fim da bipolaridade das duas grandes potências e do confronto ideológico da guerra fria daria origem a um tempo de polaridades difusas – ilustrado no estranho acontecimento do ataque às torres gémeas de Nova Iorque em 11 de setembro de 2001, na emergência de um fundamentalismo inorgânico que levaria ao Estado Islâmico e no surgimento de uma mobilidade descontrolada de refugiados de diversas origens – com a consequência no tribalismo defensivo e fragmentário, baseado no medo do diferente e do outro, que consagra a noção absurda de democracias ditas iliberais. Dir-se-ia que a memória de Norberto Bobbio ganha uma nova atualidade, já que o seu pensamento assenta na exigência de uma ligação efetiva entre a liberdade igual e a igualdade livre, entre a coesão social, a justiça distributiva, a correção das desigualdades e a incindível ligação entre a causa dos direitos humanos e a liberdade individual. O pensamento democrático exige o Estado de direito – o primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a concretização da justiça. Daí a distinção entre um “neoliberalismo” mercantil e político e a liberdade cívica e política. Para Bobbio no fundamento da democracia há um forte conceito de liberdade, compreendida já não apenas como liberdade negativa, mas também como liberdade positiva. “Em poucas palavras, a democracia pode ser definida como o sistema de regras que permitem a instauração e o desenvolvimento de uma convivência pacífica”. E a aplicação das regras obriga à formação de poderes que garantam ao máximo a sua observância. A limitação dos poderes de que nos fala Montesquieu é fundamental. No entanto, “mesmo as democracias mais consolidadas nem sempre estão em condições de obedecer aos princípios de convivência democrática nas relações com os outros Estados. O ‘futuro da democracia’ reside hoje mais do que nunca na democratização do sistema internacional”. Seria necessário seguirem-se duas direções – a gradual ampliação dos Estados democráticos e a democratização universal dos Estados, reduzindo o risco de conflitos entre os pequenos Estados. Se há sinais negativos, como a crescente desigualdade entre países ricos e pobres, pode haver sinais positivos, se a garantia dos direitos humanos for levada a sério. Será irrealista um direito cosmopolítico previsto por Kant? Bobbio fala de um individualismo ético, diferente do ontológico. O Estado existe para a pessoa e não a pessoa para o Estado. O todo não está antes das partes e a pessoa humana tem um valor próprio – por contraponto aos que entendem que o indivíduo não tem valor a não ser como parte de uma totalidade que o transcende…
DEMOCRACIA E LIBERDADE URGENTES
Eis como a democracia e a liberdade voltam à ordem do dia! A pedra angular está nos direitos fundamentais – e nestes estão os subjetivos, mas também os sociais. E avançamos na nova geração dos direitos “que se afirmam diante das ameaças à vida, à liberdade e à segurança, que provêm do crescimento cada vez mais rápido, irreversível e incontrolável do progresso técnico”. Bobbio referia-se ao direito à integridade do património genético, que nos leva à complexas relações com a bioética. O poder torna-se legitimo pelo direito e o direito torna-se efetivo pelo poder. Quando um e o outro se separam, chegamos a um dos extremos – ou o direito impotente ou o poder arbitrário. E Montesquieu é claro ao pôr-nos de sobreaviso perante tal situação, que define o governo despótico como aquele que não tem “leis nem freios”. A que se deve então a atual tentação de falar de democracias iliberais? Exatamente à subalternização da singularidade e do primado da dignidade humana, substituindo o relativismo pelo absolutismo ético, e ameaçando a própria laicidade. O medo cultivado por quantos se encerram num perigoso tribalismo (hoje evidente no caso dos refugiados), que leva à desconfiança da liberdade, põe em causa o triângulo fundamental do pensamento de Bobbio: democracia, paz e direitos humanos. Afinal, a democracia tem de se basear no respeito da dignidade humana, ou seja, da singularidade, devendo apontar para uma cultura de paz e de convivência pacífica e para uma permanente capacidade de regulação de conflitos. A filosofia política e a filosofia do direito encontram-se assim e completam-se. O risco que hoje existe é assim o de o direito se tornar impotente, correndo a sociedade o risco de se precipitar na perigosa fragmentação. E onde o poder não é limitado e controlado pelo direito, a sociedade incorre no risco do despotismo e da tirania. Não basta haver votos, ou manifestações imediatas de vontade. Poderíamos criar mecanismos de consulta instantânea dos cidadãos através das redes sociais ou das tecnologias de informação e comunicação. Isso não seria democracia, uma vez que esta exige tempo e reflexão, para evitar a tirania do imediato e do número, fruto de manipulações e demagogia. Num mundo cada vez mais complexo a ilusão das opiniões simples gera o despotismo.
LEMBRAR O “BIG BROTHER”
O que George Orwell descreveu em “1984” é hoje quase uma brincadeira de crianças… Os riscos são cada vez mais evidentes – e os Grandes Irmãos existem em toda a parte… As ideias de pós-verdade e de “fake news” têm a ver com isso mesmo. Basta olharmos em volta. A lógica da prevalência de maiorias silenciosas só pretende esconder a necessidade de a democracia promover decisões informadas, conhecedoras e ponderadas. Uma das preocupações de Bobbio teve a ver com a prática democrática e com o debate sobre o Estado democrático. E perante a pergunta “Existe uma teoria marxista do Estado que possa servir de modelo oposto à democracia dos modernos?” – a sua resposta foi negativa. Afinal, se Marx não se preocupa em prever quais deveriam ser as regras para dar vida a um Estado com rosto humano, uma vez que o Estado estaria destinado a desaparecer, o tema torna-se insustentável. No entanto, como o Estado não desapareceu, põe-se a questão de saber se há uma alternativa aceitável para a democracia representativa. E Bobbio não deixou de pôr a tónica na lei e na legitimidade, na legitimidade e na legitimação – mais do que o formalismo, importa a substância: “Da observação da irredutibilidade das crenças últimas extraí a maior lição da minha vida. Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar. E porque estou com disposição para as confissões, faço mais uma ainda, talvez supérflua: detesto os fanáticos com todas as minhas forças”. O que está em causa é a defesa intransigente do pluralismo e a salvaguarda da limitação do poder. Eis por que razão a representação e a participação, o voto e o exercício, são faces da mesma moeda. O tempo e a reflexão têm a vantagem de envolver perspetivas diferentes – o diálogo entre fações opostas, que o filósofo tanto admirava em Erasmo… No entanto a liberdade individual, o respeito mútuo e a coesão social têm de ser concretizados e postos em prática na concretização do Estado de direito e da democracia. Num tempo em que se fala de esgotamento dos modelos, designadamente o contrato social que mantemos desde o fim da última grande guerra, Bobbio põe a tónica na compreensão do que muda e do que se deve manter. A liberdade com consciência social, a cidadania ativa, a cultura da paz são fundamentais. E a memória comum é fonte de ensinamentos e sabedoria. E diz-nos: “Quando percorremos (…) os lugares da memória, os mortos perfilam-se em torno de nós em número cada vez maior. A maior parte dos que nos acompanharam já nos abandonou. Mas não podemos apaga-los como se nunca tivessem existido. No momento em que os trazemos á mente, fazemo-los reviver e ao menos por um instante não estão todos mortos, não desaparecem no nada”.