A Vida dos Livros

De 12 a 18 de setembro de 2016.

“As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal” de Miguel Moreira e Catarina Verdier (Parceria António Maria Pereira, 2016) é uma experiência literária inédita, que recorre a Fernando Pessoa como personagem surpreendente e multifacetada de Banda Desenhada.

UMA FIGURA COMPEXA E INESPERADA

A tarefa a que os autores se devotaram de acompanhar os passos de uma figura tão complexa como Fernando Pessoa merece ser alvo de atenção, uma vez que ao longo de cerca de 170 páginas, recheadas de textos e de imagens, imbuídos de um especial cuidado no tocante ao tratamento gráfico, podemos encontrar não apenas a riqueza da obra criadora do poeta e escritor, mas também uma artificiosa e inteligente forma de inserir a multiplicidade dos heterónimos numa dinâmica, muito própria da BD, de aventura, numa narrativa plena de movimento e de ritmos diferentes, muito atraentes para qualquer leitor. O autor dos desenhos e do argumento é Miguel Moreira, notando-se originalidade e maturidade no tratamento de uma arte muito exigente, sobretudo (como é o caso) quando nos encontramos perante um tema difícil, muito tratado por consagrados especialistas – o que obrigou o autor a dedicar-se longamente a um trabalho árduo, de que, no essencial, se sai muito bem. Catarina Verdier foi a colorista do álbum e o seu trabalho é notável, ficando demonstrado que o autor teve a inteligência de conceder à cor uma especial função para tornar a mancha mais atrativa, favorecendo nitidamente a leitura e o acompanhamento da história. E se há pranchas em que se nota uma certa sobrecarga de texto, compreende-se a opção do autor, uma vez que, de certo modo, faz sentir o leitor que o desenvolvimento torna-se necessário para a compreensão do enredo e da narrativa. Se dúvidas houvesse, basta vermos o brilhantismo revelado em outras pranchas onde não há palavras, mas sim apenas o gesto e o movimento. É por isso que se pode dizer que há um evidente equilíbrio entre o desenho e a palavra, com caráter adequado à natureza do tema e da personalidade considerada. Acrescente-se que há uma muito grande preocupação pedagógica na identificação dos diversos intervenientes, de modo a que se saiba exatamente quem é quem e se compreenda a importância da relação deles com Fernando Pessoa. A presença de uma perturbadora figura da morte, que vai tendo diversas aparições no decurso da história, permite a compreensão do sentido trágico da vida do poeta, dos seus amigos, dos seus heterónimos e de quantos povoam a existência da extraordinária geração de «Orpheu». Não se pense, porém, que o curso dos acontecimentos é acompanhado de modo simplificador. As relações entre Pessoa e os elementos do grupo modernista são difíceis – e Miguel Moreira tem o cuidado de as ir tratando sem simplificações, o que torna esta leitura como um precioso auxiliar para um melhor conhecimento de Fernando Pessoa e do seu universo. A expressão «escritor universal» transporta-nos, aliás, para essa perspetiva de quem pretende pela diversidade abarcar o mundo e a humanidade. Naturalmente que uma obra de Banda Desenhada não dispensa que o leitor recorra a informação complementar. No entanto, a base que se encontra nesta obra é muito interessante e útil, pondo-a em paralelo com outros exercícios levados a cabo pelas melhores experiências nos domínios biográfico e científico.

VÁRIOS LIVROS, PERSONALIDADE MULTIPLICADA

Os autores confessam que nesta obra há vários livros no mesmo livro. Entende-se que assim seja pela multiplicação de personalidades que encontramos, mas também em virtude da importância da relação da aventura plural com Mário de Sá Carneiro. Nesse caso, temos quarenta páginas de um relato especial, em que os dois poetas são protagonistas-maiores de um verdadeiro romance em diálogo, em que a vida e a ficção se misturam… Por outro lado, Bernardo Soares, o semi-heterónimo, também tem um tratamento especial, que nos permite compreender a importância do «Livro do Desassossego» – obra tardiamente revelada, mas indispensável para a consagração de Fernando Pessoa como referência de uma época, de uma geração e de uma cultura aberta. Há, assim, uma revelação mútua da riqueza criadora de Fernando Pessoa e de Bernardo Soares, em ligação com a diversidade, nada pacífica, de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos ou Ricardo Reis… E sobre a tensão existente entre as várias componentes desse complexo universo, temos o episódio inesquecível de Pessoa a escapar a uma valente sova, entre os cestos da Praça da Figueira… Catarina Verdier explica, entretanto, que a cor assume «tonalidades e jogos» que correspondem a fases diferentes – mudando também «de forma subtil em função do local em que as coisas acontecem». Como tem sido reconhecido por quantos se pronunciaram sobre esta obra singular, Fernando Pessoa surge, desde a infância, como alguém que é recriado nesta obra pela revelação de uma obra onde se manifesta uma poderosa vida de reflexão e de permanente procura de novas formas de ver, de conhecer e de compreender… E se poderíamos antecipar a resistência dos especialistas pessoanos relativamente a uma obra como esta, encontramos uma excelente recepção, dado o rigor do trabalho apresentado e considerando o cuidado extremo dos autores em não contaminarem ou contrariarem o estado da arte no domínio da investigação pessoana. Joaquim Pizarro não escondeu uma impressão muito positiva relativamente à obra, de indiscutível qualidade, salientando que estamos diante de um meio importante de revelação da importância de Pessoa na cultura portuguesa. Os autores de «As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal» conseguem no trabalho realizado: (a) utilizar a Banda Desenhada como um meio muito importante de apresentação e divulgação de temas, problemas e personalidades marcantes da cultura; (b) ligar uma narrativa de caráter histórico a uma representação gráfica de qualidade como grande valor pedagógico; (c) sensibilizar o público em geral, mas também os estudiosos, para uma figura marcante da modernidade europeia; (d) demonstrar que é possível garantir um tratamento rigoroso e de grande qualidade a propósito de um tema aliciante mas complexo, já que a heteronomia de Pessoa se soma à grande riqueza da geração modernista de «Orpheu» que o livro trata de um modo bastante atento e amplo.   

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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